EM BUSCA DA FALA PERDIDA

Eu tenho saudade do jeito de falar do meu pai. A mãe dele descendia de indígenas e ele herdou dela um hábito de usar onomatopeias no meio de conversas, maneira de argumentar ou descrever situações do dia a dia. Era assim: “o passarinho arrulhava chamando. Quando cheguei….vruuummm, sumiu!”, referindo-se ao voo do bicho. Ou então: “Gosto mesmo é de pilorda, referindo-se à mistura de arroz e feijão no prato. As palavras do meu pai incluíam ruídos, sons da natureza ou da cidade, a voz humana livremente interpretada.

Já minha mãe adorava jogos de palavras. Assim, se a palavra correta era, por exemplo, calúnia, se quisesse fazê-la rir, era só substituir o termo por calunga. Pronto. A cara feia ia embora. Minha mãe sempre caía na risada. Ela tinha um mote em dia de muito trabalho: “a gente loita, laboita, e ninguém ouxoleia”, que significa “a gente luta, labuta e ninguém elogia”, referência de um antigo programa de humor no rádio ou primórdios da TV no Brasil.

Acredito que o jeitão de falar desaparece em menos de cem anos, seja ou não gravado. As gerações passadas levam embora também as palavras. E fica o silêncio.

Tudo isso para falar da minha grata surpresa em descobrir os romances históricos de Marguerite Yourcenar (1903-1987). Já tinha lido romances históricos antes, notadamente os de Gore Vidal, Juliano (1964), sobre um imperador romano, e Criação (1981), sobre Ciro, neto do profeta Zoroastro, história ambientada no século 5 a.C.

Fiquei impactada com o rigor do texto da belga ao reproduzir as palavras dos personagens de A Obra em Negro (1968). A impressão foi forte e eu fui atrás de um texto em que a escritora explicasse como restaurar falas desaparecidas no tempo. Achei uma reunião de crônicas dela, O tempo: esse grande escultor (1983).

Ela escreveu: “Não se tem chamado suficientemente a atenção para o fato de que, embora nos tenha restado enorme massa de documentação escrita e visual do passado, nada no entanto nos sobrou de suas vozes antes do advento dos primeiros e fanhosos fonógrafos do século XIX. Mais que isso, em tudo quanto respeita à representação da palavra, nada ou quase nada se fez antes de certos grandes romancistas ou dramaturgos do século XIX.” (Yourcenar, Marguerite. O tempo, esse grande escultor (p. 21). Nova Fronteira. Edição do Kindle)

Ela cita exemplos na literatura, como os últimos pensamentos de Ana Karenina antes do suicídio ou as sensações do príncipe André, ferido em Austerlitz. Mas os trechos de Liev Tolstoi, diz Yourcenar, referem-se a palavras não pronunciadas, pensamentos que se formam em nós sob o impacto imediato do acontecimento.

No livro, ela até brinca com frases do cinema em Hollywood – como no filme Spartacus: “acho que estou esperando um bebê”, frase improvável que ela usa para ironizar roteiristas. Sabe-se, por exemplo, que Gore Vidal flertou com estúdios de cinema. Entre idas e vindas, teria escrito uma versão do roteiro do filme Ben-Hur (1959).

Lendo, descobrimos que a tremendamente culta Marguerite Yourcenar teria buscado na elaboração de seus romances as mesmas fontes do intelectual francês Michel Foucault (1926-1984) : “Há, por sorte, documentos subliterários (…) que não sofreram a filtragem ou a montagem inseparável da literatura. Considerados legais, decretos, como o senatus-consulto punindo de morte a participação nas Bacanais, que nos fazem provar brutalmente o terror dos implicados; cartas particulares que nos fornecem o tom de um estudante desculpando-se por haver desmantelado o carro da família ou de um soldado que pede a seus familiares que lhe enviem um embrulho; cartas de Cícero ou de Plínio, mais conscientes de pertencer ao “gênero epistolar”, que nos ensinam algo das mensagens trocadas entre os membros da boa sociedade; graffiti que contêm o eco garatujado das expressões e dos gritos de exclamações de rua. Vozes vindas do passado, algumas das quais quase em estado bruto, cada uma delas nos provocando um ligeiro estremeção de imprevisto, mas nada que me tivesse permitido recriar com um mínimo de plausibilidade que seja uma troca de expressões sérias, urgentes, sutis ou complexas, (…) Nada, ou quase nada, nos resta dessas inflexões, desses quartos de tom ou desses semi sorrisos falados que no entanto mudam tudo.” Yourcenar, Marguerite. O tempo, esse grande escultor (pp.24-25). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

E as descrições de paisagens inspiradas em mapas antigos? Passeio em um playground do tempo. Boas notícias, Margarete é uma delas. Até mais. Fui!

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