COMO ESCOLHI VIVER NO TIJOLINHO

Durante a busca por um apartamento nessa região, conheci muitos edifícios célebres. Havia o prédio do arquiteto paulistano mas falso catalão, o conhecido Artacho Jurado, responsável pelo desbunde meio modernista na av. Angélica. o Parque das Hortênsias; outro, do mesmo autor, na Higienópolis, chamado edifício Bretagne, meio barroco rococó rosa e azul, ao lado do Colégio Rio Branco.

Visitei ainda um edifício quase na esquina entre Angélica e Higienópolis, ao lado de uma casa que funciona como agência de banco. Era um lugar maravilhoso, mas necessitava reparos na ocasião. O piso do saguão de entrada era em mármore rosa.

O prédio depois foi inteiramente restaurado pela empresa proprietária do shopping Pátio Higienópolis. E outro, na esquina entre Baronesa de Itu e Aureliano Coutinho, com sala principal majestosa circular e um bunker anti atômico no subsolo.

Pelo tipo de imóvel que olhava, dá para perceber minha predileção. Escolhi o Edifício São Vicente, o célebre prédio de tijolinhos que o arquiteto polonês Lucjan Korngold construiu em Santa Cecília, na rua de mesmo nome, São Vicente de Paulo, 501.

Além de lindo, o apartamento aqui era o melhor, em termos de preço. Estava em ótima condição estrutural. Mas o episódio da compra foi um dolorido processo que me fez aprender muito sobre a vida.

UM DIA MUITO TRISTE

Como explicar? O Brasil tinha saído há menos de uma década de um período de hiperinflação, em que o valor das coisas é corroído. Um dado ajuda a explicar, mas me intriga até hoje. Um sobradinho de três quartos com 100 metros quadrados custava em Tucuruvi, bairro da zona norte onde nasci , R$ 300 mil em 2001, quando comprei este imóvel de três quartos por R$ 180 mil.

Foi vendido pelos filhos – três, duas lindas mulheres ruivas de olhos azuis e um homem com ar desapontado. Habitava o local o pai deles, senhor Pepe. A mulher tinha morrido há pouco, e eles resolveram vender o imóvel com o pai ainda vivo.

Estranho, mas o dia em que fechamos o negócio foi um dos mais tristes da minha vida. O seu Pepe chorou o tempo todo. Meu marido e eu assinamos três cheques, em vez de apenas um – os irmãos queriam assim, ali mesmo no ato, executar a divisão do imóvel. Pepe, o antigo proprietário? Foi morar de aluguel perto do filho, lá pelos lados do bairro de Ipiranga.

A síndica então, dona Maria Helena de Camargo Souza Baptista (1929-2017), ganhou minha preferência na primeira reunião de condomínio, quando declarou, numa insípida discussão sobre o tipo de pedra em frente ao edifício: “Calçada é de cimento sempre”.

Hoje, quase 20 anos depois, veja a rua em que moramos. Só nosso edifício tem no espaço público da rua uma calçada assim. O resto é o que cada condomínio decide ter. Tente andar com cadeira de rodas daqui até o shopping Higienópolis. Além de quase impossível, é uma experiência ímpar: estar em cadeira de rodas é como dentro de um liquidificador ligado.

Mas o espaço particular do shopping não substitui as ruas por onde deveríamos caminhar. A síndica Maria Helena é filha de um dos primeiros síndicos do prédio, Carlos Amadeu de Camargo Andrade (1902-1977), homem respeitado como criador do fundo de pensão que gestou o edifício.

Maria Helena ficou viúva aos 40. Criou os cinco filhos em Goiânia, mudou-se para cá em 1980. Morou até morrer no mesmo apartamento do pai, número 303, unidade de dois quartos, apartamento menor, sem sacada.

AS SABIÁS DA MARIA HELENA RESISTEM

O jardim é também moradia de duas famílias de sabiás, alimentados pelo condômino Daniel/ foto Ana Carmem Foschini

Dona Maria Helena morreu aos 87 anos, tranquila, lúcida, sem escândalo. Olhe em volta. As “suas sabiás”, como ela mesmo chamava, já existiam aqui enquanto São Paulo só tinha pardais e pombas pelas ruas. Hoje estão pelo bairro inteiro, como você mesmo pode ver.  

Observe os edifícios em volta surgidos depois dos anos 1970: grandes áreas construídas, o que encarece o IPTU, salas enormes, quartos e banheiros minúsculos, descaso total com a comunidade da região, preocupação total com as aparências – daí as salas enormes que escondem um cotidiano pequeno, mesquinho, de quartos sufocantes e banheiros idem.

Eu mesmo, que não paguei para nascer e jamais estudei em escolas particulares, já me portei assim, achando que tudo está à venda: saúde, educação, segurança, bem-estar, beleza, misericórdia. Esse é um delírio classe média que existe no Brasil. Depois conto minha história.

Quando a gente adoece, o filho criado em colégio de luxo precisa de medicamentos para tratar a depressão, e olhamos em volta e percebemos que não existe comunidade a quem recorrer, essas certezas da juventude caem por terra.

Há quem pense que é possível administrar melhor o prédio. Desde que moro aqui, há dois tipos de moradores que advogam esta tese: os que têm por objetivo baixar o preço do condomínio ou aqueles que nada têm a perder -memória, qualidade no imóvel, vida em comum. Valor das coisas é relativo: considera-se caro demais quando a maioria não têm como pagar. O baixo nível de inadimplência demonstra que a definição “caro demais” admite discussão.

NÃO ENTENDERAM? ENTÃO VOU DESENHAR…

Lá em Tucuruvi, onde minha irmã ainda mora, os que compraram os sobradinhos dos quais escapei -de novo, um dia eu conto a história – vivem sempre com portas e janelas fechadas, e é assim também que deixam o bairro diariamente com seus carros SUV, como se fosse possível viver indefinidamente do mesmo jeito, sem olhar para o lado, sozinho, sem andar pela rua com os próprios pés.

O mesmo tipo de gente de Tucuruvi mora aqui em frente, nesse prédio neoclássico idêntico a tantos outros do bairro. Só a renda deve ser maior. De espírito, são iguaizinhos.

Até os carros são iguais. Mulheres de meia idade saem também com SUV 4 x 4, desses feitos para jovens que vencem trilhas de barro. Só que não são jovens, estão invariavelmente sozinhas, apesar de tanto espaço interno, e não saem de seu espaço -vão passear em shoppings. Mas têm pressa. Buzinam até na calçada, antes de sair do prédio.

 

Esse papo de que o Brasil tem excesso de serviçais devido à tradição escravocrata, ou o argumento de que um condomínio não é agência de serviço social, são velhos conhecidos nesse país desigual.

O prédio em frente não considera a coleta seletiva essencial, embora a limpeza diária esteja a cargo de inúmeros funcionários. Para eles, tampouco as leis sociais de contratação são essenciais. Todos os trabalhadores pertencem a empresas terceirizadas, não como em nosso edifício, em que a Adaplan se responsabiliza pela contratação, mas somos os empregadores.Assim é na Competition e sua correlata do século 21, chamada Smart Fit.

Em nosso bairro, os maiores contratadores são as padarias. Duvido que o shopping Higienópolis não funcione da mesma forma que as academias.

Deixemos de lado os grandes centros urbanos. Sabe por que as pastagens crescem mais do que nunca  no Brasil? É só deixar o gado solto. São poucas pessoas, só território, grama e boi. Claro, precisa arrumar terra, e nada melhor que uma queimada para resolver a questão. Uma das maiores empresas do mundo na área de carnes é brasileira.

Soja também. Precisa apenas de terra e um funcionário que opere um trator. Garimpo é mina de ouro até hoje. Só tem um problema. As reservas indígenas.

Sabia que o atual presidente da República já foi garimpeiro? Também foi o único deputado a votar contra o E-Social, uma maneira de facilitar a contratação de funcionários domiciliares no Brasil.

Na época em que a lei foi aprovada, na segunda metade dos anos 2000, descobri em meu círculo social que vários de meus amigos tinham pessoas em suas casas trabalhando há décadas sem contrato. O que fizeram? Demitiram os funcionários. A alegação? “Era isso ou pagar os direitos”.

Vamos para os centros urbanos fora de São Paulo. Que tal Rio de Janeiro, que teve urbanização na virada do século retrasado para o século 20? Na ocasião, foram demolidos os chamados cortiços, casas dos trabalhadores urbanos, invariavelmente negros que eram escravizados e, libertos, não tinham onde morar.

Demolidos os cortiços, só restava aos não mais escravizados subir os morros, conhecidos hoje como favelas. Só que o Rio de Janeiro se transformou em meados do século 21 em patrimônio cultural da humanidade, graças à Unesco. Agora, os favelados observam de camarote o metro quadrado mais caro do Brasil. E agora?

Xeque. As milícias cariocas tentam dar solução ao problema ambiental que se coloca ainda sem solução, apesar dos esforços da elite política do Rio de Janeiro.

Em Salvador, bem que o senador Geddel Viera Lima tentou derrubar a lei do Patrimônio que considera a Baia de Todos os Santos um bem histórico inalienável. Ele tinha um projeto de construir um edifício com vista panorâmica no local. Ainda não deu certo.

E em Recife? Aquele lindo edifício com mais de 20 andares, em frente à praia, de onde caiu o menino Miguel, de 9 anos? Por que tantos funcionários? Afinal, qualquer mulher deve ser capaz de cuidar de seus filhos sem ajuda, mesmo durante situações difíceis, como na pandemia. E agora, quanto vai custar este acidente em termos legais?

É melhor não esperar para ver: vamos demitir os funcionários antes que ocorra algo que escape de controle.

Então, voltando à SP: se um velhinho de 98 anos pede ajuda para colocar meia elástica, por que eu devo morar em um prédio onde exista alguém que possa fazê-lo?

E mais: por que sou eu que tenho que arcar com esse custo?

Aí eu respondo: porque sou brasileira, estou envelhecendo num dos metros quadrados mais caros x serviços da cidade, porque eu trabalhei e posso, porque eu NÃO quero viver ao lado de um animal que tenta entrar num prédio à força com sua SUV, POR FAVOR, chama o porteiro, chama a polícia…Olhem para mim: eu preciso desesperadamente de ajuda. Olhem para vocês: em que país querem viver?

E tem mais: numa reunião ministerial igual àquela cheia de palavrões que veio à tona em abril de 2020, meu pai teria se levantado e deixado o recinto. Esses vermes já estão em Brasília, destruindo tudo em volta.

Que fazer? Em 50 anos, estaremos todos mortos…

Só que por enquanto, não.

Grandiosidade na estrutura e forma do pátio interno

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