O RARO SONH0 DE VOLTAR A SP

Muitos dos meus sonhos noturnos têm como cenário a casa térrea em Tucuruvi onde vivi até casar e sair do bairro da zona norte de São Paulo.

Lá encontro meus pais, ambos falecidos. Dentro da minha cabeça, estarão para sempre naquele lugar a boneca morena com barba e cavanhaque desenhados com caneta esferográfica, o cachorrinho defeituoso sem as patas traseiras que morreu ainda pequeno. Lá estão, em cores fortes que só mesmo sonho, a arvorezinha pimenteira do meu irmão Amauri, os frutos vermelhos em contraste com aqueles olhos verdes dele, e meu desejo de também ter os os dois -as pimentas e os olhos verdes do meu irmão.

Com Maria Thereza de Amarante Benaim acontece o mesmo. Mas vamos combinar que em diferentes proporções. Como eu, ela sempre trouxe dentro de si a casa da infância. Morou aqui no Edifício São Vicente entre 1956 e 1970, depois casou e descasou duas vezes, teve uma filha, enfim, viveu três décadas no Nordeste.

O lado excepcional do sonho de Thereza é que, enquanto todos querem fugir de SP, ela quer voltar. E para tanto, foi capaz de grandes movimentos.

Em junho de 2022, aos 77 anos, desabou sozinha em SP com bagagem e tudo. Vendeu apartamento enorme perto da praia de Boa Viagem, em Recife (PE), alugou o apartamento 103 aqui no térreo do São Vicente e trouxe de volta só o essencial. “O resto nem precisa. Agora estou em casa”, diz.

Seu irmão mais novo, José Carlos de Amarante Benaim, mora até hoje no apartamento 409, comprado por seus pais, local em que todos viveram como família a partir de 1956.

Maria Thereza é filha do casal José e Beatriz Benaim. Eu cheguei a conhecer a dona Beatriz do 409, sempre ao lado de sua fiel escudeira, Rute Celia, que a acompanhou por toda a vida. Quando mudei para cá, em 2001, dona Beatriz ainda enxergava, mas aos poucos perdeu totalmente a visão, por conta de glaucoma. Faleceu em 2012. Até sua morte, Thereza visitava a mãe com frequência.

Beatriz, nome de musa! Chamava-se Beatriz Chaves de Amarante. Era professora, profissão das primeiras mulheres assalariadas com formação superior em zonas urbanas no Brasil, o que lhes conferia elegância, prestígio e autoridade.

Assim era Beatriz, sempre com o cabelo preso num coque impecável. Rute esteve sempre ao lado dela e até hoje aparece semanalmente no 409, para cuidar do José Carlos.

O apartamento foi comprado ainda na planta, parte do empreendimento do então fundo de previdência IAPI, ligado à indústria.

José Benaim (1909-1998) era brasileiro, nasceu em Curitiba mas voltou criança ainda para viver com sua mãe na Argélia, então colônia francesa no norte da África.

Mas ele estava em Paris, depois de formado em engenharia química na Universidade de Nancy, quando começou a Segunda Guerra Mundial. A nacionalidade brasileira o ajudou a fugir para cá. O sobrenome Benaim circula em muitos países: Argélia, Marrocos, Israel, França. e aqui em Santa Cecília.

Beatriz e José se casaram em 1941. Maria Thereza nasceu em 1944, seu irmão três anos depois. O edifício São Vicente foi inaugurado em 1949, mas a família se mudou para o apartamento 409 em 19 de março de 1956.

É dessa época uma memória vívida: Thereza no bonde que descia a av. Angélica, com a certidão de nascimento a ser entregue no Colégio Piratininga, que ficava nos primeiros quarteirões da Angélica, à esquerda de quem desce em direção ao Centro antigo de São Paulo, depois da esquina com Al. Barros.

A garota de 11 anos olha o documento e só então descobre a grafia correta de seu nome, com H e Z. Ela escrevia Teresa. Matriculou-se no Piratininga e passou a identificar-se corretamente. Em seguida, passou a estudar no Colégio de Aplicação, que ficava perto, na r. Gabriel dos Santos.

Tente imaginar-se no lugar de Thereza, vendo pela primeira seu nome verdadeiro. Viajando de bonde no Centro de SP, em direção a um colégio grande, perto do apartamento novo.

Depois do upgrade no cenário, Thereza presenciou de seu posto avançado no edifício São Vicente o fenômeno da Bossa Nova. Em seguida, vieram a Jovem Guarda, os festivais da TV Record.

O jardim do térreo era extensão da movimentação jovem nas ruas: cantorias, bailes, expressão de um país que se expandia em direção ao interior – daí a inauguração da nova capital, Brasília em 1962- e para o mundo, com o rock, universidades, cinema. O Brasil era a promessa. Havia a sensação de que algo surpreendente aconteceria…

TRAJETÓRIA ATÉ O SÉCULO 21

Thereza aproveitou a chegada de multinacionais. Tornou-se secretária executiva bilíngue, casou em 1970, trabalhou em diversas empresas e experimentou a vida no Nordeste, para onde se mudou em 1990. Até formou-se em Psicologia por lá. Mas nunca esqueceu o sonho que teve ao viver durante anos 1950 e 60 no São Vicente.

A filha Débora prefere morar em Vila Velha, no Espírito Santo. Thereza não. Ela sentia-se deslocada ao viver no Nordeste, longe de casa.

Enfrentou uma cirurgia no pulmão e a pandemia de 2020 para cá. Quando sentiu-se forte de novo, decidiu voltar para casa e o fez, sem demora.

Aqui, repousam os sonhos -nossos devaneios pessoais, que resgatamos acordados ou não-, e os de nosso país, que seguem germinando, à espera de tempos melhores.

Uma consideração sobre “O RARO SONH0 DE VOLTAR A SP”

  1. Sobre a matéria “O Raro Sonho de Voltar a SP” são necessários alguns reparos no que se refere à mim:
    – morei no Edifício São Vicente até 1978. Retornei em 2007, a pedido de minha mãe, e atendendo ao pedido de compra da parte de minha irmã, ainda que herdaríamos alguns anos depois. Meu retorno ao apartamento se dá em temporadas, pois morando boa parte do tempo fora da cidade;
    – a Rute Célia não cuida de mim. Talvez, mais próprio dizer que cuido dela pela eterna gratidão com que se dedicou à minha mãe e filhos. Ela é como membro da família. Serei sempre devedor. Deverá, haver, talvez, o dia em que ela cuidará de mim.

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