Todos os posts de CRISTINA IORI

Sou jornalista. Integrei a equipe de criação do UOL nos anos 1990. Atuei durante cerca de 15 anos como jornalista nos principais veículos de mídia do país, como Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e Editora Abril. Mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Estava quieta no meu apartamento. Então a barbárie começou a entrar pelas janelas, corredor, varanda. Estava em 2021, durante a pandemia. Daí, resolvi criar esse site em defesa do pedaço que ainda me pertence neste planeta.

GRAVATA RIMA COM BORBOLETA?

Criei este blog em 2020, no auge da pandemia Covid-19. Naquele momento, era um instrumento de protesto contra a direção do condomínio, que planejava demitir os funcionários do prédio. Aquilo me parecia então uma dose extra e inaceitável de desumanidade.

Deu certo. Ninguém perdeu o emprego. Mas é claro que por trás também existia o meu desejo pessoal de manter a lucidez, durante mais de dois anos em que estive literalmente aprisionada dentro de casa.

Bingo. Aprendi a manipular o Word Press, a considerar (ou não) os macetes CEO de inclusão dos textos no mundo dos algoritmos de busca. De resto, já trabalhei em plataformas publisher na criação do Universo Online. Sabia algo a respeito.

Minha vida aprisionada no prédio, literal e metaforicamente, acabou me aproximando de meus companheiros de jornada, meus vizinhos, funcionários ou não. Sabiás, pica-paus, tipuana, gaviões, borboletas passavam pela minha janela.

As mulheres deixaram os cabelos brancos, abandonaram os esmaltes de cores gritantes (só Ana Maria Braga não percebeu). O planeta está acima do peso. Ninguém entra nas lojas de shopping como antes.

E meus vizinhos amados se foram. Primeiro, foi minha amiga Rosa Whitaker, do 309. Não foi pandemia. Ela morreu em 2022. E neste final de ano, em novembro, foi a vez de Antonio Moucachen, 101 anos.

Até que tentei escrever depois disso. Mas não encontro assunto. Vejam meus últimos posts: “Horror atrás das legendas”, sobre o conflito com o Hamas em Israel; ou “Pesadelos na Síria e Tibete”, que trata de destruições cinquentenárias que persistem.

Os Rolling Stones? Caramba…Paul McCartney veio aos 80 ao Brasil. Sinéad O’Connor enterrou o filho e foi junto, depois de meio século de luta pela saúde mental.

A pandemia acabou, só me resta escolher um caminho: ou volto para as ruas, ou fecho a lojinha de vez. Escrever semanalmente, não dá mais. Para meus queridos leitores, é um bye. Eu fiquei sem assunto. Sei lá se é tristeza, desânimo, mas acho que vai passar.

Vamos combinar…Se uma borboleta aparecer no jardim do Tijolinho, eu venho contar, ok?

DELICADEZA EM VIVER OU DEIXAR PARA TRÁS

Hoje fui pela manhã dizer adeus ao doutor Antonio Moucachen, que nos deixou na madrugada de sexta-feira. É o morador original do apartamento 808, que comprou ainda na planta. Também é referência de elegância, gentileza e bondade.

Completou 101 anos.

Todas as manhãs, rezava pela esposa Helena, que o deixara oito anos atrás, em 2015. Na foto principal (acima), são o casal à direita. Depois, vinham as manias diárias, o WhatsApp e o jogo de gamão.

Descobri que eu era apenas uma das signatárias de seu cumprimento de todas as manhãs, no WhatsApp: afinal, muitos alguéns conheciam a frase “bom dia, que belo dia”, que estava estampada em uma coroa de flores. Mas faltaram os emojis 🤓💕.

Tá certo que não fica bem estampar emojis do WhatsApp numa coroa de velório, mas é que não havia muita tristeza, pompa ou circunstância, nunca existiram, em volta do célebre cirurgião dentista, professor emérito da Faculdade de Odontologia da USP.

Dr. Antonio se desfez em vida de qualquer referência a peso extra na bagagem. Integrou grupos de cientistas e em inúmeras jornadas governamentais no exterior. Conheceu o mundo todo, “menos China e Austrália.”, dizia.

Nasceu há um século, em Damasco, capital da Síria. Quando chegou ao Brasil, a família de Antônio, ele o caçula de três irmãos, e seus pais, fixaram-se em Itapetininga, a 180 km de São Paulo. Lá, conheceu sua esposa, Helena, mãe de seus sete filhos.

De todas as viagens, a que lembrava com carinho foi a oportunidade de um encontro e conversa em Paris, França. Todo banco de jardim era uma oportunidade de comentar o noticiário ou conhecer o próximo, em qualquer lugar do mundo.

Atento, desenvolveu o hábito de trazer balas no bolso quando voltava do trabalho nos anos 2000, vindo do consultório da av. Paulista. É que a criançada sabia quando ele chegaria. “Tá na hora do vovô das balinhas”, esperavam.

Numa de nossas últimas conversas, relembrou uma época em que todo sábado à noite costumava levar a esposa Helena, que era professora, e os sete filhos a uma pizzaria, onde todos tomavam Coca Cola. “A pizzaria inteira olhava para a gente, uma festa, a mesa comprida…” Em vida, Moucachen colecionou 11 netos e 7 bisnetos.

E a brisa nos fins de manhã paulistana, o ar cada vez mais quente que roçava o rosto bronzeado e que o fazia fechar os olhos: “que delícia”, dizia.

Compromisso de manter a mesma elegância, doçura e bondade pela vida afora. E perceber o vento no rosto até o fim.

AMIGOS MORREM CEDO DEMAIS

A morte do ator Matthew Perry repercutiu muito entre quem cresceu e virou adulto durante os anos 90 do século passado, época em que foi apresentado o sitcom Friends . Ele interpretava Chandler, um dos amigos do título, e sua morte precoce, aos 54 anos, tem ingredientes para chocar seus pares. De resto, a notícia chocou também pela relação particular do seriado com o seu público.

Se você viver o suficiente, o que pelos meus cálculos recentes é ultrapassar os 60, terá inúmeras vezes a sensação de que algo está fora do lugar: de alguma forma, chega a notícia de que um amigo da sua juventude morreu.

De uma década para cá, dá para pensar a respeito. Nada parecido com…Friends afinal jamais teve a intenção de ensinar ninguém sobre a vida e a morte. Para seu crédito, o seriado nunca se levou a sério.

Sua importância foi registrar uma fase da chamada Geração X em fase intermediária. Morar sozinho e confraternizar com amigos antecede a formação de arranjos familiares.

Na vida real, sem roteiro definido, a morte precoce de meus pares no planeta invariavelmente esteve relacionada a cigarro, e não preciso do apoio estatístico para afirmar isso.

Lembro de uma conversa numa mesa de bar com a jornalista Inês Knaut, com quem trabalhei no final dos anos 80 na sucursal do Jornal do Brasil. “Meu câncer de tireóide nada tem a ver com cigarro. O motivo foram os sapos que engoli durante a vida”.

Seja ou não causado por sapo, o câncer não a fez abandonar o cigarro, e a doença a levou um ano depois. Tive amigo de redação que trabalhava com copos de leite e cinzeiro, lado a lado. Morreu sem estômago. Foi cirurgia de moda. Transformavam o esôfago num estômago estepe. Meu colega de ECA, Cao, fumante inveterado, viveu por mais de um ano dessa forma, numa cama de hospital. Também se foi antes dos 60.

Perry pertenceu a outra geração. Em sua autobiografia, deixou registrada sua dependência de Fentanyl, Oxicodon e todas as parafernálias que acompanham o vício em qualquer muleta. O rapaz teve o cólon explodido num desses episódios. Não vi comentários a respeito de sua vida pela metade, sem família nem nada, na casa cenário em Los Angeles. Apenas adeuzinhos compungidos.

Enquanto isso, os jovens adultos continuam morrendo em praça pública, sem campanhas públicas para erradicar o malefício da vez. Vício, médicos irresponsáveis, depressão ou sapos engolidos à parte, tudo continua igual no século 21.

PEDRAS QUE ROLAM SÃO DIAMANTES

Há dez dias Rolling Stones lançaram durante pocket show em Nova York um novo álbum, o primeiro em duas décadas a trazer composições inéditas.

O álbum chama-se “Hackney Diamonds”, referência ao brilho de cacos de vidro no chão após assalto num bairro hoje violento em Londres. No passado, por ali circulavam os criadores da banda, Jagger e o guitarrista Keith Richards.

À parte de ironias relativas ao tamanho feminino 00 de Mick Jagger, indefectível aos 80 anos, e a exuberância costumeira de Keith Richards, dedilhando aos 79 em seda roxa e anéis, a apresentação parece ter sido um sucesso relativo, nada intergaláctico ou fabricado, como o longa da cantora Taylor Swift nos cinemas.

Confesso ter acreditado que a morte em 2021 de Charlie Watts, o baterista de longa data e silenciosamente virtuoso da banda, teria sido a última notícia dos Stones.

Em seu lugar esteve Steve Jordan, que foi a escolha pessoal de Watts para assumir o comando. Também participaram em NY o baixista Darryl Jones e o tecladista Matt Clifford.

Stones estão há mais de uma década de meu itinerário de fã, mas adorei Jagger em entrevistas no Brasil quando estava prestes a dar um show na praia de Copacabana, no Rio, nos idos de 2006. Ele debochava de si mesmo (dizia que suas medidas 00 só existiam em épocas de turnê) e zombou de seu antípoda na época, Bono Vox, vocalista do U2, também no Brasil (sobre ele, dizia: “Bono está acima do peso, assim não dá para ele levitar, como fazem santos dedicados a causas do bem .”)

De toda forma, há um certo espírito de retrocesso no álbum, em parte à presença mágica dos Stones, mas também soa enraizado no tempo presente, graças em parte à produção de Andrew Watt, de 32 anos. 

Rock n’ roll de primeira linha, talvez pela última vez com as pedras rolantes.

Rolling Stones Blues

Depending on you

Sweet Sounds of Heaven (com Lady Gaga e Stevie Wonder)

HISTÓRIAS DE VIDA, AVENTURA E SUPERAÇÃO

Este ano tive ao menos duas boas surpresas no saguão do prédio conhecido como Tijolinho, onde moro e local onde vivem os autores das surpresas.

Primeiro, ganhei da minha vizinha Jussara Corrêa o livro em que narra suas memórias recentes, Na Mochila da Zhu – Viagens, Aventuras, Escolhas (Ofício das Palavras). A mandala desenhada acima é uma das ilustrações do livro, todas da própria Zhu.

Zhu é como a Ju da porta ao lado era conhecida na China. O livro narra sua vida de andanças pela Tailândia, Maringá, China, Santos, Coréia, França.

Da prática de ioga a aventuras em Shangai, Zhu nos leva com ela e conta o que aprendeu ao trabalhar e viver entre asiáticos em viagens periódicas por cinco anos, até ser interrompida pela pandemia em 2020.

Entre as coisas que aprendi, está o número “1314”, que significa “para sempre”, como ela contou. Zhu é designer industrial, e trabalha com estamparia de tecidos. Daí suas viagens para formar parcerias e intercâmbios.

Recentemente, outro vizinho lançou uma autobiografia não-convencional: trata-se do neurologista Wilson Luiz Sanvito, que publicou “O Meu Reencontro com o Passado: Recuperação de Memórias Essenciais” (Editora dos Editores).

Doutor Sanvito, como é conhecido, vai a pé diariamente até seu trabalho no Hospital Santa Casa. Além de seu trabalho como médico, foi por mais de 40 anos professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atualmente livre-docente e Professor Emérito da mesma instituição.

Seu livro atual é uma reunião pouco ortodoxa de suas impressões como cidadão, médico e educador durante 86 anos de vida no interior (que ele chama de “Brasil profundo”), capital e exterior. Além disso, reúne textos vários, escritos entre mais de 200 trabalhos científicos e 20 livros publicados.

Impressiona muito a dimensão catastrófica que Sanvito atribui à influência mundial do que ele chama “complexo médico-industrial”.

Coloca no mesmo patamar laboratórios farmacêuticos e a indústria militar, os dois corresponsáveis da dissolução do equilíbrio humano, a nível individual e global.

Sanvito fala do alto de quase um século de experiência na observação a fundo de nós, que trocamos nossa saúde e decência por qualquer ilusão de conforto ou alívio. Saúde, bem-estar e conhecimento não se compram em farmácia ou outro lugar.

São objetivos que não têm preço.

HORROR ATRÁS DAS LEGENDAS

Existe algo que supera o horror diante de fotos que documentam o ataque terrorista do grupo Hamas em Israel no sábado 7 de outubro.

São os comentários feitos pelos leitores e publicados sob as fotos. Há tempos adotei o hábito. São a melhor legenda: uma forma de entender o que passa a respeito na cabeça das pessoas.

Variam entre jornais do exterior e locais. Em especial, fiquei horrorizada com comentários de leitores da Folha de S. Paulo, em relação a um pequeno trecho em vídeo em que um provável militante do Hamas grita “Allahu Akbar” (em português, Alá é grande), enquanto olha e cospe sobre pessoas desacordadas na carroceria de uma picape.

Entre as pessoas, de bruços, está uma garota com dreadlocks e uma tatuagem na perna, único sinal que fez com que sua mãe na Alemanha a reconhecesse como sua filha de 23 anos, conforme noticiava o jornal.

Primeiro comentário:

“Israel é o representante do capitalismo internacional no Oriente Médio, e desde sempre tem sido responsável pela opressão dos palestinos que ali vivem.”

Outro: “Ainda bem que ela foi à festa com shortinho. Assim a mãe pode descobrir onde ela estava.”

Melhor que a legenda, que conta o fato, são os comentários, que nos levam a entender quem consegue justificar atrocidades com a senhora ideologia. Dá até para entender o horror em si, que afinal é levado a cabo por seres humanos.

DECIFRAR A BELEZA DOS DOCUMENTOS

Encontros memoráveis são raros e muitas vezes passam despercebidos quando acontecem. Precisa estar atento para ouvir e perceber tudo em volta.

Hoje identifico quais foram, nem sempre com pessoas que ocupavam postos de destaque, mas sempre aqueles que enchem a cabeça e o coração da gente pra sempre. Este é um texto de vários capítulos. Aqui vai o primeiro.

No início dos anos 2000, aconteceu comigo o encontro com dr. Humberto Torloni (1924-2017) . Eu integrava um grupo com a intenção de escrever a história da gênese e crescimento Hospital A.C. Camargo, especializado no combate ao câncer.

Acontece que a fantástica história da criação da entidade estava, desde seus primórdios, ligada ao médico que se transformaria em referência mundial na classificação te tumores.

Com seu charuto, sua simplicidade, sua inesgotável capacidade de trabalho, dr. Torloni organizou o Departamento de Anatomia Patológica do A.C. Camargo.

O trabalho era primoroso, de forma que, em 1962, Torloni deixou a direção do a direção do departamento de Anatomia Patológica do A.C. Camargo, mudou-se para Genebra, onde coordenou este trabalho na Organização Mundial da Saúde (OMS).

Décadas mais tarde, depois de trabalhar em Genebra, Nova York e Brasília, encontrei o dr. Torloni sentado numa cadeira da Biblioteca do A. C. Camargo, subsolo do prédio.

Um dos seus trabalhos em relação ao projeto, na ocasião, era detectar entre milhares de prontuários de pacientes, aqueles que sobreviveram aos tipos de doenças de difícil tratamento.

Sua ideia então não era estatística, mas apenas criar relatos gentis e acolhedores àqueles que enfrentassem o fantasma de estatísticas contrárias. Entre os prontuários, dr. Torloni buscava os pacientes que retornavam ao hospital para triagem de rotina. Entre estes, foram separados aqueles que voltaram depois de cinco, dez, quinze ou até vinte anos.

Foi um desses prontuários que me levou a uma história de sobrevida bonita de ouvir. Os relatos nunca acabaram em livro. Infelizmente, o projeto desandou. Mas a história não me sai da cabeça, por ser cercada de simplicidade e coincidências. Talvez seja melhor contar.

Vamos dizer que meu ex paciente chamasse Antonio, e viesse da zona rural do interior de São Paulo. Durante a adolescência, desenvolveu na perna direita um osteossarcoma, tumor ósseo de difícil tratamento e cura nos anos 1970.

Procurou o hospital quando a perna já estava arroxeada, inchada, e ele com muita dor. Antonio contou:

“Quando o médico me falou sobre amputação, na época, senti alívio, eu confesso. Aquela parte do meu corpo não tinha mais função, só causava dor. Lembrei da minha infância. Quando criança, na chácara, nossa casa era cercada de arame farpado. Um dia, durante uma trovoada, eu, a mãe, o pai e meus irmãos desmaiamos com um raio. Quando acordei, meu pai lá, no chão, morto. O corpo dele inteiro roxo, igual minha perna ficou, anos depois.

Já adulto, uma década mais tarde, Antonio veio tentar a vida em São Paulo. Uma tremenda tempestade, daquelas que só aqui, despontando ali na rua, e ele sozinho de prótese, num ponto de ônibus, sem poder correr pra lado nenhum.

“Sei lá de onde, mas apareceu um guarda-chuva me cobrindo. Era ela, a mulher com quem eu casei. Porque eu tive esse câncer e sobrevivi tantos anos eu não sei. Acho que devia perguntar pra ela.”

Qual a relação entre o pai morto, uma perna com a mesma aparência morta, uma tempestade na infância e outra na fase adulta, como fatores marcantes na vida? Sabe-se lá. Mas que é fantástico, para quem assim enxerga a vida, digamos que sim.

Saudade do doutor Torloni, capaz de enxergar a beleza escondida por trás de pilhas de prontuários e lâminas de laboratório.

PESADELOS NA SÍRIA E TIBETE

Hoje eu não quero falar de flores, árvores ou pássaros. Tive um sonho que, de repente, virou pesadelo. Acordei assustada, pensando em milhares de pessoas aprisionadas em enclaves materiais parecidos. Um pesadelo que é prisão para aqueles que estão despertos.

Pensar nas centenas de milhões que nascem em lugares abençoados e de repente se vêem aprisionados em infernos dos quais só resta escapar.

Sei qual a origem do meu pesadelo. Esta semana, li um texto do ativista tibetano Gyal Lo. Ele defende junto à ONU os direitos da minoria étnica e religiosa que habita o território sob administração chinesa que foi o Estado tibetano, lá no alto do planeta, nas cordilheiras do Himalaia.

O governo chinês indica agora internato desde a pré-escola para crianças tibetanas, onde não há contato com a família e comunidade e o idioma falado é o mandarim apenas.

Embora os internatos chineses para crianças tibetanas existam desde o início da década de 1980, até recentemente matriculavam principalmente alunos do ensino fundamental e médio. Mas a partir de 2010, o governo, em preparação para a nova vaga de pré-escolas residenciais, começou a encerrar escolas locais, inclusive as que ainda existiam em territórios de minorias étnicas.

Depois, tornou a pré-escola residencial um pré-requisito para o ensino fundamental. Embora muitos dos novos internatos estejam longe das cidades de origem das crianças, recusar a matrícula neles significaria que as crianças cresceriam com pouca ou nenhuma educação e ficariam ainda mais marginalizadas numa economia da qual muitos tibetanos já estão excluídos.

Hoje, esses internatos abrigam cerca de um milhão de crianças entre 4 e 18 anos, aproximadamente 80% dessa população. Pelo menos 100 mil dessas crianças têm apenas 4 ou 5 anos de idade.

Difícil para os adultos é desobedecer a nova política. Além de afastar as crianças do sistema educacional, desobedecer à nova política significa ter o seu nome incluído na lista negra dos benefícios do governo. Outros que protestaram contra as novas escolas sofreram consequências terríveis, conta Gyal Lo.

À medida que o governo chinês prossegue a sua busca de mais de 70 anos para construir legitimidade e controle sobre o Tibete, utiliza cada vez mais a educação como um campo de batalha para obter controle político. 

Ao invés de eliminar fisicamente as minorias simplesmente, optaram por matá-los ainda vivos, no coração dos mais jovens. Seria um modo eficaz, mais duradouro. Afinal, asiáticos pensam a longo prazo (não quero fazer graça).

DE SONHO A PESADELO PARTE 2

Recentemente folheei um livro com fotos tiradas no Líbano e Síria na primeira metade do século 20. Encantada, fui procurar imagens recentes.

Não existe mais rua, porto, prédio, localização possível nos dois países, que eram um só então. Coincidência, uma Comissão Independente de Inquérito da Síria divulgou, nesta terça-feira, o relatório mais recente sobre a situação do país árabe, afetado por 12 anos de guerra. O documento será apresentado e discutido no Conselho Internacional de Direitos Humanos daqui a uma semana, em 22 de setembro.

A primeira coisa que vem à cabeça ao ver as fotos recentes da destruição: onde estão as pessoas que habitaram esses lugares? Qual a lógica por detrás de manter tanta e contínua barbárie?

Quanto à primeira pergunta: desde o início do confronto, durante a Primavera Árabe, deixaram a Síria ou vivem em campos pelo menos 6 milhões de refugiados. Por outro lado, 11,5 % da população foi morta. Hoje, são 21,32 milhões de seres humanos, escondidos entre ruinas nas cidades ou zonas rurais.

A Síria é governada de maneira ditatorial por Bashar al-Assad desde 2000 e antes por seu pai, Hafez, desde a década de 1970. Os protestos na Síria contra o governo de Bashar al-Assad foram motivados pela onda de manifestações que se espalhou pelos países árabes e trouxe à tona a insatisfação da população com a forma como a família al-Assad governa o país. Além da presidência, integrantes do clã controlam o exército, segurança pública e ocupam vários ministérios.

Os primeiros protestos aconteceram em Deraa, cidade que fica no sul da Síria, e lá um acontecimento simbólico mobilizou o país contra Bashar al-Assad. Em março de 2011, estudantes foram presos depois de realizar uma pichação contra o presidente do país com uma mensagem que anunciava que ele seria o próximo governante a cair. O evento desencadeou uma guerra civil. Não se sabe desde então o paradeiro dos estudantes.

A revista norte-americana New Yorker publicou em sua mais recente edição a história de um advogado anônimo sírio, conhecido simplesmente como Mustafa.

Pois bem. Mustafa trabalhou incansavelmente ao longo de uma década, escondido entre ruínas, assumindo enormes riscos pessoais, a fim de garantir um tesouro sem precedentes de provas de crimes de guerra contra o regime de Bashar al-Assad. 

Os esforços de Mustafa agora estão em mãos do grupo denominado Comissão para a Justiça e Responsabilidade Internacional. Vamos ver o que acontece.

Os documentos envolveram o desenvolvimento de fontes dentro da oposição, o contrabando de documentos e a passagem de fronteiras. Ao mesmo tempo em que protegia a sua família, tentando manter a sua identidade em segredo, Mustafa continuaria ajudando a construir o que a publicação identifica como “o primeiro relatório sobre crimes de guerra sírios”. O documento se concentra na “condução das hostilidades” e descreve “uma litania de crimes”, que vão desde bombardeios indiscriminados até execuções em massa de civis que foram presos e mortos em armazéns e fábricas enquanto as forças do regime avançavam. 

Antes de sucumbir sob ameaça do regime sírio, Mustafa foi esmagado por um terremoto, dizem, na Turquia. Para defender suas últimas fontes, já que sua morte em terremoto sírio poderia desencadear buscas em ruinas, porque terremoto por terremoto, também um destes aconteceu recentemente na Síria. O horror não poupa nada ou ninguém. Quem tem a ganhar com um conflito sem fim, que destrói um país até suas raízes?

Em 2012, o jornal britânico The Guardian estipulou que a fortuna da família Assad seja de aproximadamente 122 bilhões de dólares. O dinheiro viria através de bens e outros capitais (energia, terras e imóveis). O atual presidente Bashar al-Assad, assim como o pai, seu antecessor, garante que o manejo do dinheiro seja feito dentro do seu círculo íntimo. Seus familiares e apoiadores mais leais mantêm há décadas proeminentes cargos no governo e controlam boa parte das instituições ainda vivas no país.

E SE UM PESADELO VIRASSE SONHO?

Pensando aqui com meus botões: e se a Teoria do Caos estiver mesmo correta, e o Efeito Borboleta, descoberto pelo matemático Edward Lorenz, funcionar para tudo?

Assim:  Efeito Borboleta nada mais é que a análise de como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas nestes. Como se o bater de asas de borboleta pudesse reverberar pelo planeta. Pequenas alterações de cálculo mudam o jogo.

Se um Tribunal Internacional de Direitos Humanos conseguir tirar os vampiros Assad das terras sírias, por conta de um advogado que morreu entre escombros, eu paro tudo.

O mesmo acontece se o vento balançar as bandeirinhas de seda tibetanas e uma única criança lembrar disso lá longe, nas estepes geladas. Eu não paro de sonhar.

O NOVO SEMPRE CHEGA, MAS COMO ILUSÃO?

Em 2023, as gigantes de tecnologia buscam uma forma palatável de lançar no mercado seus novos produtos baseados em inteligência artificial.

Este ano, há pouco, nas redes sociais, assistimos um dueto entre a cantora Maria Rita e sua mãe, cada uma delas ao volante de uma versão antiga e recente da Kombi. A propaganda da Volkswagen chegou como um teste à suscetibilidade do mercado diante de imagens delirantes. Pelo jeito, o teste ainda não resultou em campanha. Não sei, mas não importa. Há outras coisas à espera.

Nos EUA, há rumores do arco-da-velha sobre máquinas de reconhecimento facial, de forma que poderíamos ter o nome de qualquer um ao alcance de nossas telas em dois segundos. Até hoje, nenhum aplicativo do gênero foi lançado. Por que? Não sou bandido, sei lá como me aproveitar de um mundo sem estranhos. A utilidade disso, além de bares e clubes de paquera (azarar é a palavra usada hoje), permanecem um mistério para mim.

Na verdade, o que estas start-ups fizeram não foi um avanço tecnológico; foi uma questão ética. Os gigantes da tecnologia desenvolveram a capacidade de reconhecer rostos de pessoas desconhecidas há anos, mas optaram por reter a tecnologia, decidindo que a versão mais extrema – colocar um nome no rosto de um estranho – era perigosa demais para ser amplamente disponibilizada.

Em 2011, um engenheiro do Google relatou que estava trabalhando em uma ferramenta para pesquisar o rosto de alguém no Google e trazer outras fotos online dessa pessoa. Meses depois, o presidente do Google, Eric Schmidt, disse numa entrevista no palco que o Google “construiu essa tecnologia e nós a retivemos”.

Inadvertidamente ou não, os gigantes da tecnologia também ajudaram a impedir a circulação geral da tecnologia, abocanhando as start-ups mais avançadas que a ofereciam. Em 2010, a Apple comprou uma promissora empresa sueca de reconhecimento facial chamada Polar Rose. Em 2011, o Google adquiriu uma empresa norte-americana de reconhecimento facial popular entre as agências federais chamada PittPatt. E em 2012, o Facebook comprou a empresa israelense Face.com. Em cada caso, os novos proprietários encerraram os serviços das empresas adquiridas a terceiros. Os pesos pesados ​​do Vale do Silício eram os guardiões de fato de como e se a tecnologia seria usada.

Facebook, Google e Apple implantaram tecnologia de reconhecimento facial de maneiras que consideraram relativamente benignas: como uma ferramenta de segurança para desbloquear um smartphone, uma forma mais eficiente de marcar amigos conhecidos em fotos e uma ferramenta organizacional para categorizar fotos de smartphones pelos rostos de as pessoas neles.

Nos últimos anos, porém, os portões foram pisoteados por empresas menores e mais agressivas, como Clearview AI e PimEyes. O que permitiu a mudança foi a natureza de código aberto da tecnologia de redes neurais, que agora sustenta a maioria dos softwares de inteligência artificial.

Compreender o caminho da tecnologia de reconhecimento facial nos ajudará a navegar pelo que está por vir com outros avanços na IA, como ferramentas de geração de imagens e texto. O poder de decidir o que podem ou não fazer será cada vez mais determinado por qualquer pessoa com um pouco de conhecimento tecnológico, que poderá não prestar atenção ao que o público em geral considera aceitável.

SEGREDOS DO BARRO NO CHÃO

Sei lá o motivo, mas dei para lembrar da visita do Papa Francisco ao Brasil. Faz dez anos, em julho de 2013.

Sua Santidade esteve na laje da comunidade de Varginha, parte do conjunto de favelas de Manguinhos, subúrbio do Rio de Janeiro.

Lá de cima, falou: “Eu queria entrar na casa de cada um de vocês, pra tomar um cafezinho…mas não me ofereçam pinga!”, brincou.

Essa era uma piada clássica do meu pai, quando vivo. De onde vem a sabedoria de falar ao coração das pessoas, com a linguagem afetiva típica da cada lugar?

Há poetas que decretam: “Vem debaixo do barro do chão”.