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O que está rolando no prédio

GRAVATA RIMA COM BORBOLETA?

Criei este blog em 2020, no auge da pandemia Covid-19. Naquele momento, era um instrumento de protesto contra a direção do condomínio, que planejava demitir os funcionários do prédio. Aquilo me parecia então uma dose extra e inaceitável de desumanidade.

Deu certo. Ninguém perdeu o emprego. Mas é claro que por trás também existia o meu desejo pessoal de manter a lucidez, durante mais de dois anos em que estive literalmente aprisionada dentro de casa.

Bingo. Aprendi a manipular o Word Press, a considerar (ou não) os macetes CEO de inclusão dos textos no mundo dos algoritmos de busca. De resto, já trabalhei em plataformas publisher na criação do Universo Online. Sabia algo a respeito.

Minha vida aprisionada no prédio, literal e metaforicamente, acabou me aproximando de meus companheiros de jornada, meus vizinhos, funcionários ou não. Sabiás, pica-paus, tipuana, gaviões, borboletas passavam pela minha janela.

As mulheres deixaram os cabelos brancos, abandonaram os esmaltes de cores gritantes (só Ana Maria Braga não percebeu). O planeta está acima do peso. Ninguém entra nas lojas de shopping como antes.

E meus vizinhos amados se foram. Primeiro, foi minha amiga Rosa Whitaker, do 309. Não foi pandemia. Ela morreu em 2022. E neste final de ano, em novembro, foi a vez de Antonio Moucachen, 101 anos.

Até que tentei escrever depois disso. Mas não encontro assunto. Vejam meus últimos posts: “Horror atrás das legendas”, sobre o conflito com o Hamas em Israel; ou “Pesadelos na Síria e Tibete”, que trata de destruições cinquentenárias que persistem.

Os Rolling Stones? Caramba…Paul McCartney veio aos 80 ao Brasil. Sinéad O’Connor enterrou o filho e foi junto, depois de meio século de luta pela saúde mental.

A pandemia acabou, só me resta escolher um caminho: ou volto para as ruas, ou fecho a lojinha de vez. Escrever semanalmente, não dá mais. Para meus queridos leitores, é um bye. Eu fiquei sem assunto. Sei lá se é tristeza, desânimo, mas acho que vai passar.

Vamos combinar…Se uma borboleta aparecer no jardim do Tijolinho, eu venho contar, ok?

DELICADEZA EM VIVER OU DEIXAR PARA TRÁS

Hoje fui pela manhã dizer adeus ao doutor Antonio Moucachen, que nos deixou na madrugada de sexta-feira. É o morador original do apartamento 808, que comprou ainda na planta. Também é referência de elegância, gentileza e bondade.

Completou 101 anos.

Todas as manhãs, rezava pela esposa Helena, que o deixara oito anos atrás, em 2015. Na foto principal (acima), são o casal à direita. Depois, vinham as manias diárias, o WhatsApp e o jogo de gamão.

Descobri que eu era apenas uma das signatárias de seu cumprimento de todas as manhãs, no WhatsApp: afinal, muitos alguéns conheciam a frase “bom dia, que belo dia”, que estava estampada em uma coroa de flores. Mas faltaram os emojis 🤓💕.

Tá certo que não fica bem estampar emojis do WhatsApp numa coroa de velório, mas é que não havia muita tristeza, pompa ou circunstância, nunca existiram, em volta do célebre cirurgião dentista, professor emérito da Faculdade de Odontologia da USP.

Dr. Antonio se desfez em vida de qualquer referência a peso extra na bagagem. Integrou grupos de cientistas e em inúmeras jornadas governamentais no exterior. Conheceu o mundo todo, “menos China e Austrália.”, dizia.

Nasceu há um século, em Damasco, capital da Síria. Quando chegou ao Brasil, a família de Antônio, ele o caçula de três irmãos, e seus pais, fixaram-se em Itapetininga, a 180 km de São Paulo. Lá, conheceu sua esposa, Helena, mãe de seus sete filhos.

De todas as viagens, a que lembrava com carinho foi a oportunidade de um encontro e conversa em Paris, França. Todo banco de jardim era uma oportunidade de comentar o noticiário ou conhecer o próximo, em qualquer lugar do mundo.

Atento, desenvolveu o hábito de trazer balas no bolso quando voltava do trabalho nos anos 2000, vindo do consultório da av. Paulista. É que a criançada sabia quando ele chegaria. “Tá na hora do vovô das balinhas”, esperavam.

Numa de nossas últimas conversas, relembrou uma época em que todo sábado à noite costumava levar a esposa Helena, que era professora, e os sete filhos a uma pizzaria, onde todos tomavam Coca Cola. “A pizzaria inteira olhava para a gente, uma festa, a mesa comprida…” Em vida, Moucachen colecionou 11 netos e 7 bisnetos.

E a brisa nos fins de manhã paulistana, o ar cada vez mais quente que roçava o rosto bronzeado e que o fazia fechar os olhos: “que delícia”, dizia.

Compromisso de manter a mesma elegância, doçura e bondade pela vida afora. E perceber o vento no rosto até o fim.

HORROR ATRÁS DAS LEGENDAS

Existe algo que supera o horror diante de fotos que documentam o ataque terrorista do grupo Hamas em Israel no sábado 7 de outubro.

São os comentários feitos pelos leitores e publicados sob as fotos. Há tempos adotei o hábito. São a melhor legenda: uma forma de entender o que passa a respeito na cabeça das pessoas.

Variam entre jornais do exterior e locais. Em especial, fiquei horrorizada com comentários de leitores da Folha de S. Paulo, em relação a um pequeno trecho em vídeo em que um provável militante do Hamas grita “Allahu Akbar” (em português, Alá é grande), enquanto olha e cospe sobre pessoas desacordadas na carroceria de uma picape.

Entre as pessoas, de bruços, está uma garota com dreadlocks e uma tatuagem na perna, único sinal que fez com que sua mãe na Alemanha a reconhecesse como sua filha de 23 anos, conforme noticiava o jornal.

Primeiro comentário:

“Israel é o representante do capitalismo internacional no Oriente Médio, e desde sempre tem sido responsável pela opressão dos palestinos que ali vivem.”

Outro: “Ainda bem que ela foi à festa com shortinho. Assim a mãe pode descobrir onde ela estava.”

Melhor que a legenda, que conta o fato, são os comentários, que nos levam a entender quem consegue justificar atrocidades com a senhora ideologia. Dá até para entender o horror em si, que afinal é levado a cabo por seres humanos.

DECIFRAR A BELEZA DOS DOCUMENTOS

Encontros memoráveis são raros e muitas vezes passam despercebidos quando acontecem. Precisa estar atento para ouvir e perceber tudo em volta.

Hoje identifico quais foram, nem sempre com pessoas que ocupavam postos de destaque, mas sempre aqueles que enchem a cabeça e o coração da gente pra sempre. Este é um texto de vários capítulos. Aqui vai o primeiro.

No início dos anos 2000, aconteceu comigo o encontro com dr. Humberto Torloni (1924-2017) . Eu integrava um grupo com a intenção de escrever a história da gênese e crescimento Hospital A.C. Camargo, especializado no combate ao câncer.

Acontece que a fantástica história da criação da entidade estava, desde seus primórdios, ligada ao médico que se transformaria em referência mundial na classificação te tumores.

Com seu charuto, sua simplicidade, sua inesgotável capacidade de trabalho, dr. Torloni organizou o Departamento de Anatomia Patológica do A.C. Camargo.

O trabalho era primoroso, de forma que, em 1962, Torloni deixou a direção do a direção do departamento de Anatomia Patológica do A.C. Camargo, mudou-se para Genebra, onde coordenou este trabalho na Organização Mundial da Saúde (OMS).

Décadas mais tarde, depois de trabalhar em Genebra, Nova York e Brasília, encontrei o dr. Torloni sentado numa cadeira da Biblioteca do A. C. Camargo, subsolo do prédio.

Um dos seus trabalhos em relação ao projeto, na ocasião, era detectar entre milhares de prontuários de pacientes, aqueles que sobreviveram aos tipos de doenças de difícil tratamento.

Sua ideia então não era estatística, mas apenas criar relatos gentis e acolhedores àqueles que enfrentassem o fantasma de estatísticas contrárias. Entre os prontuários, dr. Torloni buscava os pacientes que retornavam ao hospital para triagem de rotina. Entre estes, foram separados aqueles que voltaram depois de cinco, dez, quinze ou até vinte anos.

Foi um desses prontuários que me levou a uma história de sobrevida bonita de ouvir. Os relatos nunca acabaram em livro. Infelizmente, o projeto desandou. Mas a história não me sai da cabeça, por ser cercada de simplicidade e coincidências. Talvez seja melhor contar.

Vamos dizer que meu ex paciente chamasse Antonio, e viesse da zona rural do interior de São Paulo. Durante a adolescência, desenvolveu na perna direita um osteossarcoma, tumor ósseo de difícil tratamento e cura nos anos 1970.

Procurou o hospital quando a perna já estava arroxeada, inchada, e ele com muita dor. Antonio contou:

“Quando o médico me falou sobre amputação, na época, senti alívio, eu confesso. Aquela parte do meu corpo não tinha mais função, só causava dor. Lembrei da minha infância. Quando criança, na chácara, nossa casa era cercada de arame farpado. Um dia, durante uma trovoada, eu, a mãe, o pai e meus irmãos desmaiamos com um raio. Quando acordei, meu pai lá, no chão, morto. O corpo dele inteiro roxo, igual minha perna ficou, anos depois.

Já adulto, uma década mais tarde, Antonio veio tentar a vida em São Paulo. Uma tremenda tempestade, daquelas que só aqui, despontando ali na rua, e ele sozinho de prótese, num ponto de ônibus, sem poder correr pra lado nenhum.

“Sei lá de onde, mas apareceu um guarda-chuva me cobrindo. Era ela, a mulher com quem eu casei. Porque eu tive esse câncer e sobrevivi tantos anos eu não sei. Acho que devia perguntar pra ela.”

Qual a relação entre o pai morto, uma perna com a mesma aparência morta, uma tempestade na infância e outra na fase adulta, como fatores marcantes na vida? Sabe-se lá. Mas que é fantástico, para quem assim enxerga a vida, digamos que sim.

Saudade do doutor Torloni, capaz de enxergar a beleza escondida por trás de pilhas de prontuários e lâminas de laboratório.

PESADELOS NA SÍRIA E TIBETE

Hoje eu não quero falar de flores, árvores ou pássaros. Tive um sonho que, de repente, virou pesadelo. Acordei assustada, pensando em milhares de pessoas aprisionadas em enclaves materiais parecidos. Um pesadelo que é prisão para aqueles que estão despertos.

Pensar nas centenas de milhões que nascem em lugares abençoados e de repente se vêem aprisionados em infernos dos quais só resta escapar.

Sei qual a origem do meu pesadelo. Esta semana, li um texto do ativista tibetano Gyal Lo. Ele defende junto à ONU os direitos da minoria étnica e religiosa que habita o território sob administração chinesa que foi o Estado tibetano, lá no alto do planeta, nas cordilheiras do Himalaia.

O governo chinês indica agora internato desde a pré-escola para crianças tibetanas, onde não há contato com a família e comunidade e o idioma falado é o mandarim apenas.

Embora os internatos chineses para crianças tibetanas existam desde o início da década de 1980, até recentemente matriculavam principalmente alunos do ensino fundamental e médio. Mas a partir de 2010, o governo, em preparação para a nova vaga de pré-escolas residenciais, começou a encerrar escolas locais, inclusive as que ainda existiam em territórios de minorias étnicas.

Depois, tornou a pré-escola residencial um pré-requisito para o ensino fundamental. Embora muitos dos novos internatos estejam longe das cidades de origem das crianças, recusar a matrícula neles significaria que as crianças cresceriam com pouca ou nenhuma educação e ficariam ainda mais marginalizadas numa economia da qual muitos tibetanos já estão excluídos.

Hoje, esses internatos abrigam cerca de um milhão de crianças entre 4 e 18 anos, aproximadamente 80% dessa população. Pelo menos 100 mil dessas crianças têm apenas 4 ou 5 anos de idade.

Difícil para os adultos é desobedecer a nova política. Além de afastar as crianças do sistema educacional, desobedecer à nova política significa ter o seu nome incluído na lista negra dos benefícios do governo. Outros que protestaram contra as novas escolas sofreram consequências terríveis, conta Gyal Lo.

À medida que o governo chinês prossegue a sua busca de mais de 70 anos para construir legitimidade e controle sobre o Tibete, utiliza cada vez mais a educação como um campo de batalha para obter controle político. 

Ao invés de eliminar fisicamente as minorias simplesmente, optaram por matá-los ainda vivos, no coração dos mais jovens. Seria um modo eficaz, mais duradouro. Afinal, asiáticos pensam a longo prazo (não quero fazer graça).

DE SONHO A PESADELO PARTE 2

Recentemente folheei um livro com fotos tiradas no Líbano e Síria na primeira metade do século 20. Encantada, fui procurar imagens recentes.

Não existe mais rua, porto, prédio, localização possível nos dois países, que eram um só então. Coincidência, uma Comissão Independente de Inquérito da Síria divulgou, nesta terça-feira, o relatório mais recente sobre a situação do país árabe, afetado por 12 anos de guerra. O documento será apresentado e discutido no Conselho Internacional de Direitos Humanos daqui a uma semana, em 22 de setembro.

A primeira coisa que vem à cabeça ao ver as fotos recentes da destruição: onde estão as pessoas que habitaram esses lugares? Qual a lógica por detrás de manter tanta e contínua barbárie?

Quanto à primeira pergunta: desde o início do confronto, durante a Primavera Árabe, deixaram a Síria ou vivem em campos pelo menos 6 milhões de refugiados. Por outro lado, 11,5 % da população foi morta. Hoje, são 21,32 milhões de seres humanos, escondidos entre ruinas nas cidades ou zonas rurais.

A Síria é governada de maneira ditatorial por Bashar al-Assad desde 2000 e antes por seu pai, Hafez, desde a década de 1970. Os protestos na Síria contra o governo de Bashar al-Assad foram motivados pela onda de manifestações que se espalhou pelos países árabes e trouxe à tona a insatisfação da população com a forma como a família al-Assad governa o país. Além da presidência, integrantes do clã controlam o exército, segurança pública e ocupam vários ministérios.

Os primeiros protestos aconteceram em Deraa, cidade que fica no sul da Síria, e lá um acontecimento simbólico mobilizou o país contra Bashar al-Assad. Em março de 2011, estudantes foram presos depois de realizar uma pichação contra o presidente do país com uma mensagem que anunciava que ele seria o próximo governante a cair. O evento desencadeou uma guerra civil. Não se sabe desde então o paradeiro dos estudantes.

A revista norte-americana New Yorker publicou em sua mais recente edição a história de um advogado anônimo sírio, conhecido simplesmente como Mustafa.

Pois bem. Mustafa trabalhou incansavelmente ao longo de uma década, escondido entre ruínas, assumindo enormes riscos pessoais, a fim de garantir um tesouro sem precedentes de provas de crimes de guerra contra o regime de Bashar al-Assad. 

Os esforços de Mustafa agora estão em mãos do grupo denominado Comissão para a Justiça e Responsabilidade Internacional. Vamos ver o que acontece.

Os documentos envolveram o desenvolvimento de fontes dentro da oposição, o contrabando de documentos e a passagem de fronteiras. Ao mesmo tempo em que protegia a sua família, tentando manter a sua identidade em segredo, Mustafa continuaria ajudando a construir o que a publicação identifica como “o primeiro relatório sobre crimes de guerra sírios”. O documento se concentra na “condução das hostilidades” e descreve “uma litania de crimes”, que vão desde bombardeios indiscriminados até execuções em massa de civis que foram presos e mortos em armazéns e fábricas enquanto as forças do regime avançavam. 

Antes de sucumbir sob ameaça do regime sírio, Mustafa foi esmagado por um terremoto, dizem, na Turquia. Para defender suas últimas fontes, já que sua morte em terremoto sírio poderia desencadear buscas em ruinas, porque terremoto por terremoto, também um destes aconteceu recentemente na Síria. O horror não poupa nada ou ninguém. Quem tem a ganhar com um conflito sem fim, que destrói um país até suas raízes?

Em 2012, o jornal britânico The Guardian estipulou que a fortuna da família Assad seja de aproximadamente 122 bilhões de dólares. O dinheiro viria através de bens e outros capitais (energia, terras e imóveis). O atual presidente Bashar al-Assad, assim como o pai, seu antecessor, garante que o manejo do dinheiro seja feito dentro do seu círculo íntimo. Seus familiares e apoiadores mais leais mantêm há décadas proeminentes cargos no governo e controlam boa parte das instituições ainda vivas no país.

E SE UM PESADELO VIRASSE SONHO?

Pensando aqui com meus botões: e se a Teoria do Caos estiver mesmo correta, e o Efeito Borboleta, descoberto pelo matemático Edward Lorenz, funcionar para tudo?

Assim:  Efeito Borboleta nada mais é que a análise de como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas nestes. Como se o bater de asas de borboleta pudesse reverberar pelo planeta. Pequenas alterações de cálculo mudam o jogo.

Se um Tribunal Internacional de Direitos Humanos conseguir tirar os vampiros Assad das terras sírias, por conta de um advogado que morreu entre escombros, eu paro tudo.

O mesmo acontece se o vento balançar as bandeirinhas de seda tibetanas e uma única criança lembrar disso lá longe, nas estepes geladas. Eu não paro de sonhar.

O NOVO SEMPRE CHEGA, MAS COMO ILUSÃO?

Em 2023, as gigantes de tecnologia buscam uma forma palatável de lançar no mercado seus novos produtos baseados em inteligência artificial.

Este ano, há pouco, nas redes sociais, assistimos um dueto entre a cantora Maria Rita e sua mãe, cada uma delas ao volante de uma versão antiga e recente da Kombi. A propaganda da Volkswagen chegou como um teste à suscetibilidade do mercado diante de imagens delirantes. Pelo jeito, o teste ainda não resultou em campanha. Não sei, mas não importa. Há outras coisas à espera.

Nos EUA, há rumores do arco-da-velha sobre máquinas de reconhecimento facial, de forma que poderíamos ter o nome de qualquer um ao alcance de nossas telas em dois segundos. Até hoje, nenhum aplicativo do gênero foi lançado. Por que? Não sou bandido, sei lá como me aproveitar de um mundo sem estranhos. A utilidade disso, além de bares e clubes de paquera (azarar é a palavra usada hoje), permanecem um mistério para mim.

Na verdade, o que estas start-ups fizeram não foi um avanço tecnológico; foi uma questão ética. Os gigantes da tecnologia desenvolveram a capacidade de reconhecer rostos de pessoas desconhecidas há anos, mas optaram por reter a tecnologia, decidindo que a versão mais extrema – colocar um nome no rosto de um estranho – era perigosa demais para ser amplamente disponibilizada.

Em 2011, um engenheiro do Google relatou que estava trabalhando em uma ferramenta para pesquisar o rosto de alguém no Google e trazer outras fotos online dessa pessoa. Meses depois, o presidente do Google, Eric Schmidt, disse numa entrevista no palco que o Google “construiu essa tecnologia e nós a retivemos”.

Inadvertidamente ou não, os gigantes da tecnologia também ajudaram a impedir a circulação geral da tecnologia, abocanhando as start-ups mais avançadas que a ofereciam. Em 2010, a Apple comprou uma promissora empresa sueca de reconhecimento facial chamada Polar Rose. Em 2011, o Google adquiriu uma empresa norte-americana de reconhecimento facial popular entre as agências federais chamada PittPatt. E em 2012, o Facebook comprou a empresa israelense Face.com. Em cada caso, os novos proprietários encerraram os serviços das empresas adquiridas a terceiros. Os pesos pesados ​​do Vale do Silício eram os guardiões de fato de como e se a tecnologia seria usada.

Facebook, Google e Apple implantaram tecnologia de reconhecimento facial de maneiras que consideraram relativamente benignas: como uma ferramenta de segurança para desbloquear um smartphone, uma forma mais eficiente de marcar amigos conhecidos em fotos e uma ferramenta organizacional para categorizar fotos de smartphones pelos rostos de as pessoas neles.

Nos últimos anos, porém, os portões foram pisoteados por empresas menores e mais agressivas, como Clearview AI e PimEyes. O que permitiu a mudança foi a natureza de código aberto da tecnologia de redes neurais, que agora sustenta a maioria dos softwares de inteligência artificial.

Compreender o caminho da tecnologia de reconhecimento facial nos ajudará a navegar pelo que está por vir com outros avanços na IA, como ferramentas de geração de imagens e texto. O poder de decidir o que podem ou não fazer será cada vez mais determinado por qualquer pessoa com um pouco de conhecimento tecnológico, que poderá não prestar atenção ao que o público em geral considera aceitável.

BARBIE: A FARSA DA BONECA ADOLESCENTE

Quando entrei na universidade, nos anos 1980 do século 20, descobri que meus personagens preferidos na infância – Pato Donald, Mickey, Pluto – eram tratados como agentes do imperialismo, e era preciso exorcizar qualquer ícone da chamada “indústria cultural”, expressão usada por intelectuais no final do século 20 para desbaratar aquilo que crescemos amando, como os desenhos Disney ou, por que não, figuras como a boneca Barbie)

Quase meio século depois, a turma jogou para o alto qualquer pudor em sair do armário como “Barbie lover” e transformou em sucesso o lançamento de “Barbie” (veja aqui o trailer), a bobagem que eclipsou outro longa, “Oppenheimer”, dirigido por Christopher Nolan, produtor, roteirista e criador de mais de cem filmes bem sucedidos. Veja aqui o trailer de Oppenheimer.

Tá certo que não é assim difícil derrubar assunto tão chato e batido quanto a criação da bomba atômica, em Nova York, por um cientista oriundo do governo nazista alemão. Mas a Barbie tampouco é sinônimo de modernidade, com minissaias 60’s e saltos plásticos discotheque.

Ok, foi jogada de mestre colocar no papel do namorado de Barbie, Ken, o astro loirão da vez, Ryan Gosling. Aliás, apesar de canadense, Gosling é o tipo de ator de face inexpressiva incensado pelo público norte-americano, como Marlon Brando (1924-2004) ou Clint Eastwood (1930). Sobre o último, rola até uma piada: “Clint tem duas expressões: com ou sem chapéu”.

Só que Barbie não é Mickey

Engana-se quem coloca tudo na mesma caixa – tipo guardar brinquedos de criança. Uma coisa é querer demonizar um personagem desenhado pelo artista Walt Disney e que hoje é um símbolo do capitalismo.

Esse marketing acaba colocando Barbie no altar pop da infância dos anos 60, cenário tão repleto de imagens que nos deixa extasiados.

Só que Barbie jamais foi um símbolo infantil. Trata-se do primeiro brinquedo sexuado da história humana, criado sob falsificação por uma dona de casa branca norte- americana.

Uma entre dez filhas de um casal de imigrantes poloneses criada em Denver (Colorado), Ruth Handler apresentou em 1956 a seu marido e parceiro de negócios da empresa Mattel três exemplares de um objeto encontrado em viagem de férias na Suiça. Nos EUA, três anos depois, surgiria Barbie, a boneca batizada com o nome de sua filha Bárbara. No entanto, a precursora nada tinha de inocente.

Ao procurar ideias para ocupar um espaço do jornal Bild-Zeitung em 1952, o cartunista Reinhard Beuthien desenhou uma personagem incomum. Com um espírito livre e desinibido, a Bild Lilli trabalhava como secretária, mas às vezes se relacionava com homens mais velhos por dinheiro. 

As tiras de Bild Lilli no jornal Bild-Zeitung

Não demorou para que Lilli se tornasse um ícone. A boneca deixou de existir apenas nos jornais. Uma versão de plástico com cabelo loiro platinado, olhos azuis, seios grandes e um batom vermelho provocante, ela passou a ocupar as prateleiras de tabacarias, bares adultos e sex shops. A boneca Lili chegou a ser distribuída como brinde a novos assinantes, notadamente público adulto.

A versão em plástico de Lilli, personagem de cartoon

Apenas em 1978 Ruth Handler (1916-2002) foi finalmente condenada por fraude na concepção do brinquedo Barbie, tendo que pagar uma multa e prestar serviços comunitários. No fim da vida, trabalhou em campanhas de conscientização feminina. Morreu de complicações pós-operatórias para a retirada de um câncer no cólon.

Então, qualquer paixão mercurial e insensata pela imagem de Barbie nada tem a ver com apelos infantis. Nem a Barbie do filme é criança: a loira dirige um conversível anos 60 e sonha acelerar numa auto estrada, como qualquer adolescente.

SINÉAD MORRE UM ANO DEPOIS DO FILHO SHANE

A cantora irlandesa Sinéad O’Connor, 56, foi encontrada morta num quarto em Londres dia 26 de julho. O primeiro veículo a informar seu falecimento foi The Irish Times, com uma declaração da família que pedia “privacidade”.

Há pouco mais de um ano, em janeiro de 2022, a artista perdeu um de seus quatro filhos, Shane, que fugiu de uma clínica psiquiátrica onde estava internado para tratar depressão sob risco de suicídio. Ele foi encontrado morto três dias após o desaparecimento.

Eu não era especialmente ligada à imagem careca e rebelde da irlandesa até 2007, quando tive acesso a seu depoimento em The Oprah Winfrey Show.

Na entrevista, ela narra como, desde que começou sua carreira de sucesso em gravadora, aos 21 anos, suas reações emocionais -tipo “quebrar móveis em quartos de hotel”, ou “atirar, pratos, copos e talheres em restaurantes” eram vistos como típico comportamento rock’n roll”.

Até que, em 1999, veio a tentativa de suicídio e um diagnóstico de transtorno bipolar e comportamento borderline.

Então fiquei impressionada com a capacidade de Winfrey como entrevistadora, ao perguntar o que a cantora sentiu ao ser medicada por um remédio que fosse funcional. A irlandesa disse: “foi um mergulho em água morna. É como encher um balde com água morna. Seu peito é o balde.”

Existe um crescimento endêmico de doenças mentais no planeta, e distúrbios do tipo, em parte devido à atuação confusa e desenfreada de laboratórios farmacêuticos, são de controle ineficiente.

Sinéad O’Connor enfrentou um inferno nos últimos anos, apenas por atravessar um período difícil para mulheres em geral, mas de manejo sensível para alguém com distúrbio mental.

A cantora tentou o suicídio nada menos que oito vezes em um ano depois de ser “arremessada” na menopausa por uma histerectomia “radical” (remoção do útero). Em 2016, ela ficou 36 horas desaparecida em Chicago (EUA)

Depois, explicou: “O que realmente deu início a tudo isso foi que eu fiz uma histerectomia radical na Irlanda há dois anos e perdi a cabeça depois disso”, disse ela. “E acho que foi isso que aconteceu com minha família, e temos que dar crédito à minha família”. 

Criada em Dublin, na Irlanda, Sinéad nunca escondeu a infância difícil e os abusos físicos e sexuais infligidos pela mãe, que tinha, em casa, uma “câmara de tortura” para castigar os filhos.

Em suas memórias, Rememberings , ela conta. “Tenho quatro filhos de quatro pais diferentes, apenas um dos quais me casei, e me casei com três outros homens, nenhum dos quais é o pai dos meus filhos”, escreveu ela. “As pessoas sempre querem saber por que tenho quatro filhos com quatro homens diferentes. Eu digo a eles que aconteceu assim. Não foi algo que planejei, mas não senti que tinha que me casar para ter um filho.”

Em janeiro de 2022, seu filho, Shane, que estava internado numa instituição psiquiátrica para tratar depressão, foi encontrado morto. O jovem tinha 17 anos. Era o terceiro filho de Sinéad, fruto de seu relacionamento com o produtor musical Donal Lunny. A cantora não tinha a custódia do filho desde 2013.

Sobre a produção de seu álbum e o filho em Rememberings . “Foi produzido por Dónal Lunny, assim como meu terceiro filho, Shane”, escreveu ela. “Se não tivéssemos feito este álbum, não teríamos feito nosso lindo filho.”

Depois da morte de Shane, Sinéad deu uma pausa na carreira. Em suas memórias, ela chamou Shane de “a criança que mais se parece comigo, acredito, pelo olhar e por natureza”. Apenas alguns dias antes de sua morte, Sinéad O’Connor tuitou em memória de seu filho.  “Vivo como uma criatura noturna morta-viva desde”, escreveu. “Ele era o amor da minha vida, a lâmpada da minha alma. Éramos uma alma em duas metades. Ele foi a única pessoa que me amou incondicionalmente. Estou perdida sem ele.”

Curioso é que, pouco tempo atrás, Sinéad disse aos filhos que, caso morresse repentinamente, a família ligasse primeiro para contadores e gravadora, para resguardar os direitos de reprodução de suas gravações, antes de avisar a mídia.

O maior sucesso da cantora é “Nothing Compares do U”, música composta por Prince e lançada em 1990 pela irlandesa.

Estranho ou não, Prince morreu com 57 anos, aproximadamente a mesma idade. Sua morte aconteceu em 2016, ano em que a cantora tentou suicídio oito vezes.

O bardo de Minneapolis nada tinha a ver com Sinéad (versão irlandesa de Janete). Basta ouvir a versão de Prince: “Nothing Compares to U “.

O que então o festivo e debochado John Lewis Nelson, ou Prince Nelson, tinha em comum com a europeia deprimida e crepuscular Sinéad O’Connor, de maneira que ambos foram encontrados mortos da mesma forma?

Sinéad acabou sozinha num quarto qualquer em Londres. Prince foi encontrado sem vida em sua casa, após uma dose letal de pílulas Vicodin, falsas ou não, fecundas no mercado norte-americano de medicamentos.

Tudo pode ser considerado uma enorme coincidência. Assim será se continuarmos a colocar todos os ídolos que um dia amamos, de uma forma ou de outra, num grande liquidificador.

De um lado, a emoção, alegria ou dor que criadores e artistas podem nos oferecer nesta vida, e qualquer dinheiro como pagamento nunca será o suficiente. De outro, que exista uma forma mais decente de acolher a dissonância que nos ronda impunemente na vida.

IA PODERÁ SER INFERNO DE ALUCINAÇÕES

Em um futuro próximo, podemos ser reféns de versões terríveis e alucinatórias de imagens criadas por nós no passado. Enredo não falta.

Vejam aqui o anúncio da Telekom alemã que eu encontrei traduzido no Twitter de Glória Perez, autora que eu sigo porque sou fã de suas novelas de TV.

Nos EUA e continente europeu os governos estão cercando empresas que lideram pesquisas na área de inteligência artificial, com intuito de regular o setor.

Talvez seja tarde demais. Duvido que não existam centenas de milhares de imagens de gerações humanas arquivadas na “nuvem”. O nome é fantasmagórico, mas vem a calhar.

Imagine as imagens embaralhadas num coquetel dos aplicativos de IA? Uau, nem pensar. Uma das notícias da vez é que em algum lugar, entre quase 8 bilhões de humanos, existe um ser idêntico a você andando por aí. Sei lá de onde saiu isso, se em laboratórios de genética, cálculos estatísticos ou acervos públicos de imagem. Vi até no Fantástico (TV Globo).

Ficou curioso? Melhor não…

MISTÉRIOS FORA DO ALCANCE

ESCREVI O TEXTO ABAIXO TRÊS SEMANAS ATRÁS. EM SEGUIDA, TIREI DO AR. ACHEI BIZARRO, SEM SENTIDO. HOJE RELI E ACHEI NEM TANTO.

Desde que comecei a escrever este blog, durante a pandemia, nunca faltou assunto. Lá se vão três anos.

Notícias sim, mas por vezes um acontecimento ultrapassa o limite do real e deixa a gente assim, vazio.

Trata-se da implosão do submarino Titan, que estava a meio caminho para o abismo de 3.800 metros de profundidade sob o Atlântico norte, em alto-mar mas já próximo da costa do Canadá.

Para quem desconhece, ali está o navio Titanic, que naufragou em 1912, causou cerca de 1500 mortes e já foi exaustivamente mostrado em telas, desde que o cineasta James Cameron produziu o segundo longa sob o assunto, em 1997.

Se alguém não assistiu Titanic, saiba que o filme traz cenas inacreditáveis do naufrágio, com candelabros e louças espalhados a 3.800 metros de profundidade. Recentemente, foram liberadas imagens tridimensionais do navio.

Qual seria então o fascínio pela imagem velha conhecida, mas forte o bastante para causar o desaparecimento de Stockton Rush, Hamish Harding, Shahzada e Suleman Dawood e Paul-Henry Nargeolet, todos mortos em decorrência da pressão colossal que “venceu” o revestimento da embarcação?

Dois mortos, um empresário de origem paquistanesa e o filho, Shahzada e Suleman Dawood, nasceram ali perto do Himalaia, mais alta cordilheira e berço das maiores civilizações do nosso planeta. No entanto, foram procurar aventura num abismo gelado no fundo do mar. Pouco importa o motivo.

Interessa é o mistério das imagens diante dos olhos: telas que vemos à nossa frente mas que representam mistérios além, produzidos graças a experiências alheias, que jamais serão nossas.

E de pensar que um dia escrevi minha tese de Mestrado sobre as telas -as que buscamos como sonho ou realidade e que nos enganam (telas nunca são reais, eu defendo. São produtos tecnológicos.)

Usei como exemplo das chamadas telas as fotografias feitas por equipes de jornais na cobertura de hotéis na Praça Tahrir, no Cairo (Egito), berço dos protestos da Primavera Árabe, em 2011.

Minha tese é que boa parte dos protestos teve suas dimensões ampliadas pela grande angular, objeto entre repórteres e militantes, que distorcia através da imagem o alcance, dimensão e expressividade dos últimos. Como resultado, os protestos geraram grande número de mortos. De resto, a longo prazo, houve aumento expressivo de refugiados, crises políticas e conflitos internos, como guerras civis.

Claro que assim parece simples, mas eu usei argumentos estrambólicos, que remetem à perspectiva renascentista etc e tal. Citei Benjamin, as teses de reprodutibilidade da escola de Frankfurt, nem lembro mais.

Soube há pouco que a animação da implosão do pequeno submarino Titan no Tik Tok teve mais de 44 milhões de visualizações. Eu achei esta animação do Estadão mais informativa. Não reproduz, infelizmente, a sensação de implodir sob o peso do oceano inteiro sobre sua cabeça.

Existem mistérios inegociáveis, acredito, em todo o Universo.