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Saiba tudo sobre o Edifício São Vicente

GRAVATA RIMA COM BORBOLETA?

Criei este blog em 2020, no auge da pandemia Covid-19. Naquele momento, era um instrumento de protesto contra a direção do condomínio, que planejava demitir os funcionários do prédio. Aquilo me parecia então uma dose extra e inaceitável de desumanidade.

Deu certo. Ninguém perdeu o emprego. Mas é claro que por trás também existia o meu desejo pessoal de manter a lucidez, durante mais de dois anos em que estive literalmente aprisionada dentro de casa.

Bingo. Aprendi a manipular o Word Press, a considerar (ou não) os macetes CEO de inclusão dos textos no mundo dos algoritmos de busca. De resto, já trabalhei em plataformas publisher na criação do Universo Online. Sabia algo a respeito.

Minha vida aprisionada no prédio, literal e metaforicamente, acabou me aproximando de meus companheiros de jornada, meus vizinhos, funcionários ou não. Sabiás, pica-paus, tipuana, gaviões, borboletas passavam pela minha janela.

As mulheres deixaram os cabelos brancos, abandonaram os esmaltes de cores gritantes (só Ana Maria Braga não percebeu). O planeta está acima do peso. Ninguém entra nas lojas de shopping como antes.

E meus vizinhos amados se foram. Primeiro, foi minha amiga Rosa Whitaker, do 309. Não foi pandemia. Ela morreu em 2022. E neste final de ano, em novembro, foi a vez de Antonio Moucachen, 101 anos.

Até que tentei escrever depois disso. Mas não encontro assunto. Vejam meus últimos posts: “Horror atrás das legendas”, sobre o conflito com o Hamas em Israel; ou “Pesadelos na Síria e Tibete”, que trata de destruições cinquentenárias que persistem.

Os Rolling Stones? Caramba…Paul McCartney veio aos 80 ao Brasil. Sinéad O’Connor enterrou o filho e foi junto, depois de meio século de luta pela saúde mental.

A pandemia acabou, só me resta escolher um caminho: ou volto para as ruas, ou fecho a lojinha de vez. Escrever semanalmente, não dá mais. Para meus queridos leitores, é um bye. Eu fiquei sem assunto. Sei lá se é tristeza, desânimo, mas acho que vai passar.

Vamos combinar…Se uma borboleta aparecer no jardim do Tijolinho, eu venho contar, ok?

COMO SER FELIZ EM FRANCÊS

Acho que poucos adultos lembram de uma expressão antiga (nem eu sei onde aprendi), mas diante de um prazer, vem o mote: “melhor só em Paris!”

Frase que acompanha a degustação de bebida ou comida consideradas deliciosas ou diversão inigualável, talvez seja essa a ideia que me levou a estudar o idioma francês durante a pandemia em 2019.

O fato é que durante uma aula de conversação na semana passada descobri que em francês há gradações para a palavra felicidade, de “joie” até “bonheur“.

“Assim é na vida”, pensei. Vale degustar uma mousse aerada, rever fotos antigas no celular, achar uma nota de cem dólares na rua ou casar com o amor da sua vida no final da história. Só que a gente não sabe o final.

Sobre a mousse aerada, vejam a receita aqui no site…

No mais, vale juntar durante a história uma coleção de “joies”. No final, vem a “bonheur”. Um esclarecimento: a segunda foto é o manacá da serra que a Prefeitura plantou no lugar da tipuana que foi derrubada. A primeira foto é do manacá florido, como vai estar o da calçada daqui a uns dois anos. Voilà!

Sobre a mousse aerada, vejam a receita aqui no site…

ALAMEDAS SE TRANSFORMAM EM CAMINHOS*

Sem alarde, a majestosa árvore que cobre boa parte do jardim em frente de casa vai nos deixando. Pouco a pouco, porque a Prefeitura já carregou pelo menos quatro caminhões cheios de galhos imensos, que desabam no chão com estrondo.

Teve até manifestação em defesa da árvore por parte dos incautos que passavam pela rua e ficaram revoltados. Mas não há saída. A árvore está morta, dizem os especialistas. Melhor cortar e evitar acidentes antes das tempestades em verões futuros.

Nosso vizinho mais longevo, Antônio Moucachen, 100 anos, que comprou o apartamento 808 ainda na planta, nos anos 40 , não se lembra muito dessa árvore. Mas o dentista não criou os sete filhos aqui no prédio.

Senão o espírito delicado do dr. Antônio jamais teria esquecido a nuvem amarela na calçada aqui em frente. Afinal, a planta que agora nos diz adeus pertence à família das tipuanas, conhecidas dos paulistanos por encher os caminhos de flores, quando jovens.

Hoje em dia tipuanas são plantadas em terrenos maiores, não em calçadas. Mas as que ainda vivem nestas péssimas condições agem corajosamente como costumam fazer as plantas diante da adversidade: procuram a luz, enchem de vida, beleza e saúde o lugar onde estiverem, mesmo que à revelia dos que ali a colocaram.

Um dia, desaparecem, ou arrancadas do solo, em manifestações dantescas de seres humanos que eliminam tudo o que estiver contra seus objetivos, ou por puro cansaço, sei lá, a vida acaba, embora a gente orgulhosamente acredite que não até o fim.

*O título deste texto é uma referência a um poema do espanhol Federico Garcia Lorca…”as alamedas se vão/mas ficam os caminhos….”

Hora de dizer adeus à sombra de nossa amiga. De onde vem e onde estará a energia que se estendeu sobre nós durante 50 anos?

Mas a vida continua…

Poderemos em breve sugerir à nova síndica profissional o plantio de uma muda no local, sob autorização da Prefeitura, no lugar da tipuana. Todas as imagens de árvores floridas de pequeno porte foram tiradas do site Viva Decora, com as fontes de cada uma corretamente identificadas.

Vamos ver.

DIÁRIO DE ISABEL

Como sempre acontece, a passagem do tempo traz mudanças e nem sempre para melhor, do ponto de vista pessoal, que afinal é a única forma de perceber a vida. 2023 começou com uma ausência para os moradores do Tijolinho.

Cadê o sorriso de Isabel? Tanto me ajudou a enfrentar o acalorado ano eleitoral , a bebê que percebia a passagem de cada morador ou transeunte, as tentativas dela em fugir para a rua pelas frestas da grade, seu riso fácil, os olhinhos fechados por causa do sol.

Ela completou um ano em dezembro de 2022, com festa no jardim comum do prédio, ela toda linda de roupinha branca.

Depois do Carnaval, Isabel começou a frequentar a tradicional escola em Água Branca, Grão de Chão, criada em 1984. Eu que sempre fui a favor de escola, achei legal.

Sei lá em que fase do desenvolvimento ela entrou -só aos pais compete esse acompanhamento-, mas chora bastante. Escorada em todas as coisas que li na época do crescimento do meu filho, penso: “é a vida dela, inegociável é o desenvolvimento pessoal” etc.

Por outro lado, pensei que talvez interesse a ela, quando crescer, saber que no ano em que nasceu, sua presença alegre foi um alento para quem vivia um momento histórico específico que ela vai estudar. Cabe a ela qualquer opinião que tenha a respeito.

Fotos ela vai ter à exaustão. Não precisa. Assim, depois de concedida a fundamental autorização de seus pais, podemos brincar de crescer novamente. Só que de longe, sem atrapalhar.

Diário de Isabel, segundo Tijolinho. Este é o primeiro post sobre eventuais relatos das experiências de crescimento de uma criança num prédio da região central de SP. Enquanto por aqui ela ou a gente estivermos!

Vale saber: o choro no início do ano de 2023 era causado pelas fatais viroses da vida escolar e o despontar dos dentes, que começaram a aparecer três ou quatro de uma só vez, por volta de abril. Ou seja, o choro foi fundamental para compor o sorriso em qualquer tempo. Coisas da vida.

O RARO SONH0 DE VOLTAR A SP

Muitos dos meus sonhos noturnos têm como cenário a casa térrea em Tucuruvi onde vivi até casar e sair do bairro da zona norte de São Paulo.

Lá encontro meus pais, ambos falecidos. Dentro da minha cabeça, estarão para sempre naquele lugar a boneca morena com barba e cavanhaque desenhados com caneta esferográfica, o cachorrinho defeituoso sem as patas traseiras que morreu ainda pequeno. Lá estão, em cores fortes que só mesmo sonho, a arvorezinha pimenteira do meu irmão Amauri, os frutos vermelhos em contraste com aqueles olhos verdes dele, e meu desejo de também ter os os dois -as pimentas e os olhos verdes do meu irmão.

Com Maria Thereza de Amarante Benaim acontece o mesmo. Mas vamos combinar que em diferentes proporções. Como eu, ela sempre trouxe dentro de si a casa da infância. Morou aqui no Edifício São Vicente entre 1956 e 1970, depois casou e descasou duas vezes, teve uma filha, enfim, viveu três décadas no Nordeste.

O lado excepcional do sonho de Thereza é que, enquanto todos querem fugir de SP, ela quer voltar. E para tanto, foi capaz de grandes movimentos.

Em junho de 2022, aos 77 anos, desabou sozinha em SP com bagagem e tudo. Vendeu apartamento enorme perto da praia de Boa Viagem, em Recife (PE), alugou o apartamento 103 aqui no térreo do São Vicente e trouxe de volta só o essencial. “O resto nem precisa. Agora estou em casa”, diz.

Seu irmão mais novo, José Carlos de Amarante Benaim, mora até hoje no apartamento 409, comprado por seus pais, local em que todos viveram como família a partir de 1956.

Maria Thereza é filha do casal José e Beatriz Benaim. Eu cheguei a conhecer a dona Beatriz do 409, sempre ao lado de sua fiel escudeira, Rute Celia, que a acompanhou por toda a vida. Quando mudei para cá, em 2001, dona Beatriz ainda enxergava, mas aos poucos perdeu totalmente a visão, por conta de glaucoma. Faleceu em 2012. Até sua morte, Thereza visitava a mãe com frequência.

Beatriz, nome de musa! Chamava-se Beatriz Chaves de Amarante. Era professora, profissão das primeiras mulheres assalariadas com formação superior em zonas urbanas no Brasil, o que lhes conferia elegância, prestígio e autoridade.

Assim era Beatriz, sempre com o cabelo preso num coque impecável. Rute esteve sempre ao lado dela e até hoje aparece semanalmente no 409, para cuidar do José Carlos.

O apartamento foi comprado ainda na planta, parte do empreendimento do então fundo de previdência IAPI, ligado à indústria.

José Benaim (1909-1998) era brasileiro, nasceu em Curitiba mas voltou criança ainda para viver com sua mãe na Argélia, então colônia francesa no norte da África.

Mas ele estava em Paris, depois de formado em engenharia química na Universidade de Nancy, quando começou a Segunda Guerra Mundial. A nacionalidade brasileira o ajudou a fugir para cá. O sobrenome Benaim circula em muitos países: Argélia, Marrocos, Israel, França. e aqui em Santa Cecília.

Beatriz e José se casaram em 1941. Maria Thereza nasceu em 1944, seu irmão três anos depois. O edifício São Vicente foi inaugurado em 1949, mas a família se mudou para o apartamento 409 em 19 de março de 1956.

É dessa época uma memória vívida: Thereza no bonde que descia a av. Angélica, com a certidão de nascimento a ser entregue no Colégio Piratininga, que ficava nos primeiros quarteirões da Angélica, à esquerda de quem desce em direção ao Centro antigo de São Paulo, depois da esquina com Al. Barros.

A garota de 11 anos olha o documento e só então descobre a grafia correta de seu nome, com H e Z. Ela escrevia Teresa. Matriculou-se no Piratininga e passou a identificar-se corretamente. Em seguida, passou a estudar no Colégio de Aplicação, que ficava perto, na r. Gabriel dos Santos.

Tente imaginar-se no lugar de Thereza, vendo pela primeira seu nome verdadeiro. Viajando de bonde no Centro de SP, em direção a um colégio grande, perto do apartamento novo.

Depois do upgrade no cenário, Thereza presenciou de seu posto avançado no edifício São Vicente o fenômeno da Bossa Nova. Em seguida, vieram a Jovem Guarda, os festivais da TV Record.

O jardim do térreo era extensão da movimentação jovem nas ruas: cantorias, bailes, expressão de um país que se expandia em direção ao interior – daí a inauguração da nova capital, Brasília em 1962- e para o mundo, com o rock, universidades, cinema. O Brasil era a promessa. Havia a sensação de que algo surpreendente aconteceria…

TRAJETÓRIA ATÉ O SÉCULO 21

Thereza aproveitou a chegada de multinacionais. Tornou-se secretária executiva bilíngue, casou em 1970, trabalhou em diversas empresas e experimentou a vida no Nordeste, para onde se mudou em 1990. Até formou-se em Psicologia por lá. Mas nunca esqueceu o sonho que teve ao viver durante anos 1950 e 60 no São Vicente.

A filha Débora prefere morar em Vila Velha, no Espírito Santo. Thereza não. Ela sentia-se deslocada ao viver no Nordeste, longe de casa.

Enfrentou uma cirurgia no pulmão e a pandemia de 2020 para cá. Quando sentiu-se forte de novo, decidiu voltar para casa e o fez, sem demora.

Aqui, repousam os sonhos -nossos devaneios pessoais, que resgatamos acordados ou não-, e os de nosso país, que seguem germinando, à espera de tempos melhores.

COMO ESCOLHI VIVER NO TIJOLINHO

Durante a busca por um apartamento nessa região, conheci muitos edifícios célebres. Havia o prédio do arquiteto paulistano mas falso catalão, o conhecido Artacho Jurado, responsável pelo desbunde meio modernista na av. Angélica. o Parque das Hortênsias; outro, do mesmo autor, na Higienópolis, chamado edifício Bretagne, meio barroco rococó rosa e azul, ao lado do Colégio Rio Branco.

Visitei ainda um edifício quase na esquina entre Angélica e Higienópolis, ao lado de uma casa que funciona como agência de banco. Era um lugar maravilhoso, mas necessitava reparos na ocasião. O piso do saguão de entrada era em mármore rosa.

O prédio depois foi inteiramente restaurado pela empresa proprietária do shopping Pátio Higienópolis. E outro, na esquina entre Baronesa de Itu e Aureliano Coutinho, com sala principal majestosa circular e um bunker anti atômico no subsolo.

Pelo tipo de imóvel que olhava, dá para perceber minha predileção. Escolhi o Edifício São Vicente, o célebre prédio de tijolinhos que o arquiteto polonês Lucjan Korngold construiu em Santa Cecília, na rua de mesmo nome, São Vicente de Paulo, 501.

Além de lindo, o apartamento aqui era o melhor, em termos de preço. Estava em ótima condição estrutural. Mas o episódio da compra foi um dolorido processo que me fez aprender muito sobre a vida.

UM DIA MUITO TRISTE

Como explicar? O Brasil tinha saído há menos de uma década de um período de hiperinflação, em que o valor das coisas é corroído. Um dado ajuda a explicar, mas me intriga até hoje. Um sobradinho de três quartos com 100 metros quadrados custava em Tucuruvi, bairro da zona norte onde nasci , R$ 300 mil em 2001, quando comprei este imóvel de três quartos por R$ 180 mil.

Foi vendido pelos filhos – três, duas lindas mulheres ruivas de olhos azuis e um homem com ar desapontado. Habitava o local o pai deles, senhor Pepe. A mulher tinha morrido há pouco, e eles resolveram vender o imóvel com o pai ainda vivo.

Estranho, mas o dia em que fechamos o negócio foi um dos mais tristes da minha vida. O seu Pepe chorou o tempo todo. Meu marido e eu assinamos três cheques, em vez de apenas um – os irmãos queriam assim, ali mesmo no ato, executar a divisão do imóvel. Pepe, o antigo proprietário? Foi morar de aluguel perto do filho, lá pelos lados do bairro de Ipiranga.

A síndica então, dona Maria Helena de Camargo Souza Baptista (1929-2017), ganhou minha preferência na primeira reunião de condomínio, quando declarou, numa insípida discussão sobre o tipo de pedra em frente ao edifício: “Calçada é de cimento sempre”.

Hoje, quase 20 anos depois, veja a rua em que moramos. Só nosso edifício tem no espaço público da rua uma calçada assim. O resto é o que cada condomínio decide ter. Tente andar com cadeira de rodas daqui até o shopping Higienópolis. Além de quase impossível, é uma experiência ímpar: estar em cadeira de rodas é como dentro de um liquidificador ligado.

Mas o espaço particular do shopping não substitui as ruas por onde deveríamos caminhar. A síndica Maria Helena é filha de um dos primeiros síndicos do prédio, Carlos Amadeu de Camargo Andrade (1902-1977), homem respeitado como criador do fundo de pensão que gestou o edifício.

Maria Helena ficou viúva aos 40. Criou os cinco filhos em Goiânia, mudou-se para cá em 1980. Morou até morrer no mesmo apartamento do pai, número 303, unidade de dois quartos, apartamento menor, sem sacada.

AS SABIÁS DA MARIA HELENA RESISTEM

O jardim é também moradia de duas famílias de sabiás, alimentados pelo condômino Daniel/ foto Ana Carmem Foschini

Dona Maria Helena morreu aos 87 anos, tranquila, lúcida, sem escândalo. Olhe em volta. As “suas sabiás”, como ela mesmo chamava, já existiam aqui enquanto São Paulo só tinha pardais e pombas pelas ruas. Hoje estão pelo bairro inteiro, como você mesmo pode ver.  

Observe os edifícios em volta surgidos depois dos anos 1970: grandes áreas construídas, o que encarece o IPTU, salas enormes, quartos e banheiros minúsculos, descaso total com a comunidade da região, preocupação total com as aparências – daí as salas enormes que escondem um cotidiano pequeno, mesquinho, de quartos sufocantes e banheiros idem.

Eu mesmo, que não paguei para nascer e jamais estudei em escolas particulares, já me portei assim, achando que tudo está à venda: saúde, educação, segurança, bem-estar, beleza, misericórdia. Esse é um delírio classe média que existe no Brasil. Depois conto minha história.

Quando a gente adoece, o filho criado em colégio de luxo precisa de medicamentos para tratar a depressão, e olhamos em volta e percebemos que não existe comunidade a quem recorrer, essas certezas da juventude caem por terra.

Há quem pense que é possível administrar melhor o prédio. Desde que moro aqui, há dois tipos de moradores que advogam esta tese: os que têm por objetivo baixar o preço do condomínio ou aqueles que nada têm a perder -memória, qualidade no imóvel, vida em comum. Valor das coisas é relativo: considera-se caro demais quando a maioria não têm como pagar. O baixo nível de inadimplência demonstra que a definição “caro demais” admite discussão.

NÃO ENTENDERAM? ENTÃO VOU DESENHAR…

Lá em Tucuruvi, onde minha irmã ainda mora, os que compraram os sobradinhos dos quais escapei -de novo, um dia eu conto a história – vivem sempre com portas e janelas fechadas, e é assim também que deixam o bairro diariamente com seus carros SUV, como se fosse possível viver indefinidamente do mesmo jeito, sem olhar para o lado, sozinho, sem andar pela rua com os próprios pés.

O mesmo tipo de gente de Tucuruvi mora aqui em frente, nesse prédio neoclássico idêntico a tantos outros do bairro. Só a renda deve ser maior. De espírito, são iguaizinhos.

Até os carros são iguais. Mulheres de meia idade saem também com SUV 4 x 4, desses feitos para jovens que vencem trilhas de barro. Só que não são jovens, estão invariavelmente sozinhas, apesar de tanto espaço interno, e não saem de seu espaço -vão passear em shoppings. Mas têm pressa. Buzinam até na calçada, antes de sair do prédio.

 

Esse papo de que o Brasil tem excesso de serviçais devido à tradição escravocrata, ou o argumento de que um condomínio não é agência de serviço social, são velhos conhecidos nesse país desigual.

O prédio em frente não considera a coleta seletiva essencial, embora a limpeza diária esteja a cargo de inúmeros funcionários. Para eles, tampouco as leis sociais de contratação são essenciais. Todos os trabalhadores pertencem a empresas terceirizadas, não como em nosso edifício, em que a Adaplan se responsabiliza pela contratação, mas somos os empregadores.Assim é na Competition e sua correlata do século 21, chamada Smart Fit.

Em nosso bairro, os maiores contratadores são as padarias. Duvido que o shopping Higienópolis não funcione da mesma forma que as academias.

Deixemos de lado os grandes centros urbanos. Sabe por que as pastagens crescem mais do que nunca  no Brasil? É só deixar o gado solto. São poucas pessoas, só território, grama e boi. Claro, precisa arrumar terra, e nada melhor que uma queimada para resolver a questão. Uma das maiores empresas do mundo na área de carnes é brasileira.

Soja também. Precisa apenas de terra e um funcionário que opere um trator. Garimpo é mina de ouro até hoje. Só tem um problema. As reservas indígenas.

Sabia que o atual presidente da República já foi garimpeiro? Também foi o único deputado a votar contra o E-Social, uma maneira de facilitar a contratação de funcionários domiciliares no Brasil.

Na época em que a lei foi aprovada, na segunda metade dos anos 2000, descobri em meu círculo social que vários de meus amigos tinham pessoas em suas casas trabalhando há décadas sem contrato. O que fizeram? Demitiram os funcionários. A alegação? “Era isso ou pagar os direitos”.

Vamos para os centros urbanos fora de São Paulo. Que tal Rio de Janeiro, que teve urbanização na virada do século retrasado para o século 20? Na ocasião, foram demolidos os chamados cortiços, casas dos trabalhadores urbanos, invariavelmente negros que eram escravizados e, libertos, não tinham onde morar.

Demolidos os cortiços, só restava aos não mais escravizados subir os morros, conhecidos hoje como favelas. Só que o Rio de Janeiro se transformou em meados do século 21 em patrimônio cultural da humanidade, graças à Unesco. Agora, os favelados observam de camarote o metro quadrado mais caro do Brasil. E agora?

Xeque. As milícias cariocas tentam dar solução ao problema ambiental que se coloca ainda sem solução, apesar dos esforços da elite política do Rio de Janeiro.

Em Salvador, bem que o senador Geddel Viera Lima tentou derrubar a lei do Patrimônio que considera a Baia de Todos os Santos um bem histórico inalienável. Ele tinha um projeto de construir um edifício com vista panorâmica no local. Ainda não deu certo.

E em Recife? Aquele lindo edifício com mais de 20 andares, em frente à praia, de onde caiu o menino Miguel, de 9 anos? Por que tantos funcionários? Afinal, qualquer mulher deve ser capaz de cuidar de seus filhos sem ajuda, mesmo durante situações difíceis, como na pandemia. E agora, quanto vai custar este acidente em termos legais?

É melhor não esperar para ver: vamos demitir os funcionários antes que ocorra algo que escape de controle.

Então, voltando à SP: se um velhinho de 98 anos pede ajuda para colocar meia elástica, por que eu devo morar em um prédio onde exista alguém que possa fazê-lo?

E mais: por que sou eu que tenho que arcar com esse custo?

Aí eu respondo: porque sou brasileira, estou envelhecendo num dos metros quadrados mais caros x serviços da cidade, porque eu trabalhei e posso, porque eu NÃO quero viver ao lado de um animal que tenta entrar num prédio à força com sua SUV, POR FAVOR, chama o porteiro, chama a polícia…Olhem para mim: eu preciso desesperadamente de ajuda. Olhem para vocês: em que país querem viver?

E tem mais: numa reunião ministerial igual àquela cheia de palavrões que veio à tona em abril de 2020, meu pai teria se levantado e deixado o recinto. Esses vermes já estão em Brasília, destruindo tudo em volta.

Que fazer? Em 50 anos, estaremos todos mortos…

Só que por enquanto, não.

Grandiosidade na estrutura e forma do pátio interno

SUL DO EQUADOR, BOLA DA VEZ

Em janeiro de 2023, estamos prestes a nos render a uma administração profissional do condomínio Edifício São Vicente, o que pode ser bom ou ruim. Cabe aos proprietários refletir. Até agora, estivemos bem. Ocupamos um lugar confortável de São Paulo, a meio caminho entre os centros financeiro e histórico, em um bairro com bom fornecimento de saúde, educação, transporte e lazer.

Os impostos e preços são baixos em relação a outras áreas consideradas nobres, mais distantes e com trânsito nem sempre fácil. Vamos pensar em manter o que temos ao considerar exemplos que temos em outras cidades grandes no planeta. Sei que pela comparação, perdemos em majestade e extensão, mas lá vai.

O complexo de apartamentos Parkchester, no Bronx, em Nova York, tem dez anos a mais que o nosso Edifício São Vicente, em São Paulo. Além dos típicos tijolinhos à mostra, as semelhanças são muitas.

Olhe abaixo. Lembra de algo???

As moradias verticais em Parkchester são na sua origem concebidas como habitações especialmente elegantes para a classe média. Depois de inaugurado, o empreendimento foi classificado como a segunda propriedade mais valiosa de Nova York, atrás do Rockefeller Center.

Entregando mais de 12.000 apartamentos, Parkchester chegou em um momento de grande entusiasmo pela capacidade do design urbano de promover o bem social.

Unia, de um lado, o modelo de arranha-céus do Modernismo – que alcançaria o paroxismo com o edifício Copan, encomendado em 1951 a Oscar Niemeyer como prédio a ser inaugurado no Quarto Centenário de SP, em 1954. Por outro lado, remetia a ideias do urbanismo transformando cidades em amplos espaços artísticos. No Brasil, esta segunda onda redundaria no projeto da capital Brasília, inaugurada em 1962.

Nem uma coisa, nem outra. O nosso Rockefeller Center, o Edifício Copan, concebido como condomínio que uniria um grande centro comercial e de lazer a residências, deu ruim.

Com o declínio da região central de SP nos anos 1970, o edifício entrou em decadência e durante muitos anos sua imagem esteve associada a um ambiente conturbado. Chegou a ser considerado um cortiço vertical. Após a década de 1990, com o início da revitalização do Centro, o Copan atraiu a classe média, em busca de moradia de qualidade, bem localizada e com preços mais baixos.

Mas desde os anos 1980 era visível o contraste entre os blocos, já que o Bloco D tem apartamentos de três quartos, com moradores de alto poder aquisitivo, enquanto no Bloco B, considerado o mais pobre do prédio, há 448 quitinetes e 192 apartamentos de quarto e sala conjugados.

A logística monumental de um grupo imenso de moradores em espaço reduzido constitui eterno desafio, como a passagem do tempo mostrou. São problemas do Copan até hoje estabelecer um fluxo na coleta de toneladas diárias de lixo, manutenção de 22 elevadores e rotina de mais de 5 mil moradores, entre adultos, idosos e crianças. Até o que deveria ser rotina, como a manutenção ou a limpeza das fachadas sinuosas, devido à magnitude do edifício sempre acaba em discussão entre a Prefeitura, poder púbico e moradores.

Enquanto isso, no Bronx…

Nas décadas de 1970 e 1980, os apartamentos de Parkchester, em NY, foram convertidos em condomínios e disponibilizados a um custo relativamente baixo para as famílias que neles residiam. Metade foi comprada por um consórcio e permaneceu em imóveis alugados; alguns outros foram comprados por indivíduos que também os alugaram. Pelos padrões de preços astronômicos de moradias atuais, os apartamentos continuam relativamente razoáveis ​​- um de dois quartos pode custar menos de US$ 1.900 por mês ou ser vendido por cerca de US$ 250.000. 

Existe em Nova York a questão racial, que ainda impede que público branco em ascensão considere dividir moradia com chamadas minorias raciais que atualmente ocupam esses imóveis: hispanos asiáticos, afro americanos. Duvido que esta questão ocupe o mesmo espaço em relação a quesitos como proximidade de aparelhos urbanos, qualidade x preço de imóveis.

De resto, acredito que Santa Cecília, Barra Funda e Bom Retiro serão os bairros da vez em São Paulo, aos moldes do que tem acontecido em outros lugares do mundo.

ONDE FICA E COMO SURGIU ESTE EDIFÍCIO

O Condomínio São Vicente ocupa área de 3.466 metros quadrados (175 construída), código do logradouro 19635-5, no bairro de Santa Cecília, subdistrito da Consolação. O que isso significa?

Para quem se coloca em frente ao prédio, de costas para casa, diante da rua e do mundo:

à esquerda – fica pouco mais de um quarteirão abaixo da avenida Higienópolis, onde começa o bairro de mesmo nome, daquela avenida até a Paulista;

à direita – vai até alameda Nothman, por onde começa o bairro de Campos Elíseos, perto também do Bom Retiro, originalmente reduto dos judeus fugidos da Europa pós-guerras;

em frente – até rua Tupi, divisa com o bairro do Pacaembu;

atrás – até a rua da Consolação, divisa com a região central da cidade.

Não sei como está em outras grandes cidades. Em SP, este metro quadrado é taxado a valores irrisórios em relação à infraestrutura. Em outras palavras, vale dizer que atualmente moramos em Higienópolis, embora paguemos IPTU de Santa Cecilia.                                   

Corte para os anos 1940. Nessa década, foi criado o fundo responsável pela arrecadação de verba para a compra de terreno e construção de nosso prédio. Era um fundo sindical de funcionários públicos.

Higienópolis, ao lado, era então um bairro formado por casarões – não como os casarões da Paulista, mas um arremedo destes, para classe média ascendente que sonhava com o status dos barões do café.

A região era alta, cercada de hospitais – o Asilo dos Tuberculosos (hoje Colégio Sion), Samaritano, Mackenzie, Santa Casa da Misericórdia.

Nesse contexto, uma cooperativa de funcionários públicos comprou um caro terreno em Santa Cecília para construir moradia para seus associados. Veja que naquele tempo não existia saúde pública. Mas tanto a saúde, como o bem-estar geral estava a cargo dos sindicatos. Assim era no México, Argentina, Brasil. Hoje em dia, não sei como está no México e Argentina.

Na segunda metade dos anos 1940, o fundo adquiriu o terreno conhecido como “sítio da fonte”, de onde jorrava água límpida (hoje escondida no poço sob o subsolo do bloco que habito, e que era potável até menos de uma década atrás). O fundo constituiu verba para iniciar a construção, pronta em 1949.

O arquiteto responsável pela obra foi o judeu polonês  Lucjan Korngold   (1905-1963), que em São Paulo construiu belos edifícios a baixo custo, como o Edifício Chopin, já nos anos 1960, na rua Rio de Janeiro, em Higienópolis.

A fachada econômica tem de tijolo laminado a placas de Eternit – um arranjo considerado original até os dias de hoje. Uma pedra fina -aerolite- reveste os pilares da entrada.  A construção resultou econômica demais, e sobrou dinheiro. Conta a história que Korngold convenceu os condôminos a comprar uma obra de arte, conjunto de duas esculturas.

As esculturas do saguão são de Bruno Giorgi

As esculturas estão até hoje sob o vão livre de nosso prédio. Saibam que já estive em reuniões de condomínio em que ouvi sugestão para “que fossem vendidas, já que não servem para nada”.

Para quem não sabe, Bruno Giorgi (1905-1993) é o escultor de vários monumentos célebres em Brasília, como “Os Guerreiros” (1959), popularmente conhecida como Os Candangos, estátua que está na Praça dos Três Poderes, em Brasília

Este edifício é originalmente composto de apartamentos com ou sem sacada, de três ou dois dormitórios, o que é raro na região, onde os edifícios são dinossauros imensos sem área comum habitável, como é de praxe nos cenários urbanos do final de século 20 no Brasil.

 Originalmente, o nosso edifício não tinha grades altas de ferro sobre os muros, e o saguão era praça  muito admirada no bairro.As inovações sugiram depois, para dar segurança aos moradores, e consistem nas duas guaritas e inúmeras garagens, embora o espaço no subsolo sempre tenha existido.

As inovações sugiram depois, para dar segurança aos moradores, e consistem nas duas guaritas e inúmeras garagens, embora o espaço no subsolo sempre tenha existido.

O fundo de pensão se assemelha aos arranjos de imigrantes da virada do século. Por exemplo, no Bom Retiro, ninguém operava com dinheiro vivo. Assim, o crédito era mais fácil.

Os tijolos aparentes também remontam aos prédios de baixo custo nas áreas periféricas de Nova York e Londres.

QUE PENA

Lembro da primeira imagem de Gal Costa que me ficou gravada na memória – era a revista juvenil Capricho (Abril), certamente primeira metade dos anos 70 do século passado.

Ela de biquíni, cabelão solto, a praia acho Ipanema, no Rio.

Que linda, pensei. Que moderna, julguei. E, pela primeira vez, desde que me entendi como jovem na periferia de São Paulo, senti vontade de estar em outro lugar, na praia, quem sabe, cercada de amigos, com pouca roupa.

Que nada. A vida me mostrou que aquela liberdade, beleza e modernidade que Gal representava na foto não estavam na praia, no biquíni, cabelão ou penduricalhos. Em algumas situações, o que está além é inalcançável para alguns. Não todos, felizmente!

De onde vem essa energia que Gal representa, e que nos empurra em direção ao futuro, que faz a gente recusar o passado e buscar além?

Maria da Graça nasceu em 1945, Salvador, Bahia. Um dos rincões do Brasil, que logo se mostraria um dos endereços mais modernos do mundo, como ela.

Da Bahia vieram também João Gilberto (1931-1919), Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Tom Zé, este último, o único do sertão nordestino.

Entre minhas canhestras ideias sobre o Brasil (confesso que li Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda e não entendi nada), acredito que estão os que vivem no litoral e aqueles outros, do sertão, urbano ou rural.

No litoral estão os modernos. Tem coisa mais elegante que o Recôncavo baiano? Até Michael Jackson sabia (rs).

Eu estou entre os do sertão de São Paulo: desconfiados, desajeitados em festas, transporte, missas ou celebrações públicas, tímidos ou estupefatos diante de espetáculos da natureza. Aquela tal “deselegância discreta” que Caetano cita na letra de “Sampa”.

A melhor definição para o sentimento de um sertanejo diante da imensidão do oceano vem de Zé Ramalho, que nasceu no Brejo da Cruz, Paraíba. A letra de “Beira-Mar”, diz: “Além do limite do vale profundo/Que sempre começa na beira do mar/É na beira do mar”

A ideia do mar sem água: vale profundo, abismo. Esse arrepio diante da imensidão pode engolir a gente. Não aconteceu com o Zé Ramalho, poeta moderno demais.

Terei a chance de topar com uma personalidade como Gal em meu período de vida, ou ciclos da criação são mais longos na natureza?

Sabe-se lá. Estar diante da beleza é um privilégio.

BOM DIA, NOVO DIA…

Domingo, 2 de outubro de 2022 é o último dia de um ciclo de escuridão que começou, segundo eu (o que não representa nada) em 14 de março de 2018, quando foi assassinada a tiros a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro.

Depois vieram a eleição presidencial e a pandemia, e o que nos restava de lógica e dignidade ficou submerso por mais de quatro anos. Confesso estar impressionada com a calma e a postura indefectível do brasileiro médio.

Tipo internacionalmente conhecido pela alegria e licenciosidade, é de tirar o chapéu a nobreza, o silêncio e a generosidade da galera que carregou a fome de 33 milhões de irmãos na base da solidariedade. E os índices de vacinação, altíssimos em relação ao de países europeus?

Podemos agora nos orgulhar: historicamente definidos como “mansos” ou “gentis”, no sentido de incapazes de revolta ou falsamente acolhedores, e dizer que a mansidão é mesmo característica do brasileiro, mansidão como a de Jesus, do espírito que recusa o grito e a violência como solução.

E que mineiramente, como quem não quer nada, vai às urnas e “destrói a escuridão”. Espero que desta vez para nunca mais.

Até amanhã, no século 21!